Todo ser humano tem direito à dignidade, como prevê o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Dignidade essa que os estudantes de Direito do iCEV estão ajudando a assegurar para os detentos do sistema carcerário piauiense, por meio do programa “Informar para Garantir Direitos”, em parceria com o Tribunal de Justiça do Piauí.
“O trabalho dos estudantes iCEV é ajudar nesse mapeamento, colhendo informações sobre os detentos piauienses e esclarecendo sobre os direitos que eles possuem”, explica Lucas Villa, professor do iCEV, doutor em Direito, advogado criminalista renomado, pesquisador e autor de livros.
O programa é executado pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF) e Vara de Execuções Penais (VEP) do TJ-PI e pelos estudantes de Direito iCEV.
Idealizado pelo Juiz da Vara de Execuções Penais de Teresina, Vidal de Freitas, o projeto tem como intuito reforçar a presença da Vara de Execuções Penais dentro dos presídios e conversar com os detentos do sistema prisional piauiense :
“Tenho como obrigação inspecionar mensalmente os presídios. Toda vez eu levava alguns estudantes comigo para anotar as manifestações dos presos. Só que isso era um pavilhão a cada mês, então demorava muito porque são 8 estabelecimentos prisionais. A ideia foi realizar uma parceria com o iCEV, que já é nosso parceiro há muito tempo, e criar equipes para a gente fazer mais entradas em pavilhões e assim mais recolhimento das manifestações dos apenados”, explica o juiz.
São 15 estudantes do curso de Direito do iCEV, do 5º ao 9º período, que participam do grupo de pesquisa orientado pelo professor Lucas Villa e acompanhado pelo coordenador de extensão, Euzébio Pereira. Eles são divididos em duas equipes por turno: manhã e tarde.
Às segundas-feiras , 8h e 14h, os grupos adentram os pavilhões dos presídios, sempre acompanhados pelos servidores do GMF e de policiais do sistema carcerário. Durante os outros dias os estudantes ficam na sede do TJ-PI tratando esses dados coletados.
O grupo tem a missão de andar por todos os pavilhões de oito estabelecimentos prisionais na área de Teresina e Altos, dando oportunidade a todos os apenados de se manifestarem e tirarem suas dúvidas, pelo menos duas vezes ao ano.
O programa teve início no começo de maio e até agora já foram coletadas 937 manifestações dos apenados nos presídios percorridos, os dados foram consolidados pelos servidores da GMF do TJ-PI.
Carla Lima, estudante do 5º período, explica que a abordagem é feita em geralmente quatro perguntas: nome, nome da mãe (para que não haja equívocos em relação a pessoas homônimas), se está sentenciado há mais de um ano e se tem alguma questão de saúde ou dúvida a ser esclarecida.
No momento das manifestações podem surgir outras dúvidas, como: atestado de pena , quanto tempo falta cumprir, remição de pena, como recorrer da sentença, data e antecipação de audiência – trabalho e remição de pena, pedidos médicos, antecipação de audiência.
Os estudantes anotam todas as questões na ficha, esclarecem o que tiverem ciência no momento e levam as respostas ao presídio na próxima visita, que são entregues aos presos pela própria direção dos estabelecimentos. Os requerimentos dos apenados também são encaminhados à Vara de Execuções Penais de Teresina e as reivindicações dos presos provisórios enviadas aos respectivos juízes criminais.
O objetivo principal do programa é dar oportunidade aos presos, tanto provisórios quanto apenados, para apresentarem à justiça os seus pedidos de informação, esclarecimento, suas solicitações, para que se possa então examinar cada situação, prestar as informações e, se for o caso, registrar no processo e tomar alguma providência.
“Os presos, apesar de receberem um atestado de pena, muitas vezes têm questões e dúvidas que precisam ser apresentadas à direção do estabelecimento, bem como questões a serem resolvidos e apresentadas para o juiz de execuções penais. Então nós colhemos e prestamos informações para que se alguém tiver direito a algum benefício, que seja então fornecido e garantido pela justiça”, explica o juiz Vidal.
A estudante participante do Programa, Anne Cavalcante, 9º período, conta que a vivência fez mudar suas perspectivas profissionais em relação à área criminal, que agora passa a cogitar. “Muitos deles não sabem por que estão presos, não sabem o que é o 157, que é o artigo de roubo. Em outros casos muitas pessoas são presas injustamente porque cometeram furtos de coisas muito pequenas, por isso esse projeto é tão relevante”.
O projeto faz parte da força operacional de um sistema desenvolvido pelo juiz Vidal que revolucionou a forma como a Vara de Execuções Penais administra o tempo de pena dos presos e, por isso, ganhou a 14ª edição do Prêmio Innovare na categoria Juiz.
O ganhador explica como tudo foi parte de uma mudança de mentalidade dos operadores do Direito:
“É muito simples: vários presos passavam muito tempo já tendo direito à progressão de regime e à condicional. Nós só invertemos a ordem: ao invés de examinar depois se já preencheu os pré-requisitos, a gente examina antes. É uma via de mão dupla: o apenado não fica nenhum dia a mais no regime carcerário e com isso diminuímos os índices negativos dentro dos presídios”.
Ao final do processo, o juiz efetiva o parecer e dá direito e se o réu obter um benefício, como progressão ou condicional, ele já deixa o fórum ao fim da audiência, sem precisar retornar ao presídio.
O Sistema Carcerário Piauiense passou por diversas reformas estruturais e ideológicas, mas ainda há muito a ser melhorado, um dos pontos principais é a superlotação.
De acordo com levantamentos de 2021 da Secretaria de Justiça do Piauí (Sejus), são aproximadamente 4.836 pessoas custodiadas em 17 unidades prisionais em todo o Piauí. O que representa uma superlotação de mais de 80%.
“Para dar condições razoáveis para esses presos é necessário pelo menos mais 2.500 vagas no sistema carcerário para poder acomodá-los em condições mínimas de acordo com a lei”, explica o magistrado.
Por outro lado, a situação carcerária do estado é tida como referência nacional em alguns âmbitos, principalmente no trabalho de ressocialização dos apenados por meio da educação.
O Piauí é o quinto estado brasileiro com maior aumento de atividades educacionais em presídios. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), no começo de 2022 houve um aumento de 59,65% em relação às atividades educacionais do primeiro semestre do ano passado.
O estado também se destacou em 2021 conquistando o segundo lugar, dentre os estados brasileiros, no número de apenados inscritos no Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos para Pessoas Privadas de Liberdade (Encceja PPL), em ranking também divulgado pelo Depen.
“Penso que a ferramenta mais forte para ressocialização é a educação, isso pode mudar várias vidas. Já entrevistei pessoas ali pelo programa [nos presídios] que não sabiam nem escrever o nome, nem soletrar. Às vezes tudo o que falta pra mudar a vida de uma pessoa é uma boa educação”, declarou a estudante Anne.
As mudanças de mentalidade podem ser vistas em indicadores, como o retorno de 98% dos apenados do regime semiaberto, eles receberam benefício de saída temporária no Dia das Mães em 2022. Os dados são do TJ-PI.
“O resultado positivo demonstra a vontade dos reeducandos de regularizar sua situação para com a sociedade. O baixo número dos que não retornaram tem sido a regra no Piauí. Em outras ocasiões já registramos até 100% de retorno”, destacou o juiz Vidal.
Segundo o pesquisador Lucas Villa, conhecer de perto um presídio deveria ser uma experiência que todo brasileiro deveria ter:
“Conhecer um sistema prisional por dentro, visitar um presídio, conhecer a realidade de perto é importante para evitar a reprodução de um senso comum que a gente vê o tempo todo no imaginário brasileiro que não condiz com a realidade”.
O juiz Vidal aponta a incoerência no senso comum do imaginário brasileiro que “bandido bom é bandido morto”: “essa visão é meio neurótica, porque só se pensa em bandido quando é o outro, quando alcança alguém que é próximo, parente, amizades ou até mesmo com a gente, ninguém quer. Com essa mentalidade, a criminalidade só faz crescer, na realidade”.
A rotina semanal dos estudantes é intensa. Ao chegar no presídio eles passam por uma inspeção minuciosa, separam os formulários que vão utilizar nas entrevistas e entregam à direção as respostas das manifestações coletadas na semana anterior.
Os estudantes geralmente realizam dois pavilhões por visita e sempre acompanhados pelo diretor ou vice-diretor. No momento das entrevistas os estudantes são orientados a não rebater os questionamentos dos detentos para evitar conflitos.
“Aqui tá mais tranquilo, melhorou muito. Eu trabalho distribuindo a comida pro pessoal, bom que não fica parado pensando besteira, né? E ainda fico menos tempo preso”, diz o detento com o nome fictício Francisco, apenado há 6 anos, faz parte do lado evangélico do pavilhão 6, do outro estão os faccionados.
Ao entrar no pavilhão, o vice-diretor da Casa de Custódia e também chefe de disciplina, com as iniciais R.M, dá a palavra de ordem para que todos fiquem em fila, sentados de costas em suas celas.
Os estudantes se posicionam em uma distância segura e perguntam se algum deles tem alguma manifestação ou dúvida, se sim, um detento por vez pode se levantar e ficar de frente para o estudante de Direito.
Essa rotina é repetida em todas as celas, de todos os pavilhões.
O programa “Informar para garantir Direitos” é importante ferramenta de ressocialização dos apenados, é um meio de mostrar para eles que o ser humano tem valor e isso o estimula a deixar a vida de crime e ser reinserido na sociedade.
No Piauí existe um incentivo que não há em mais nenhum outro estado, o “Reconstruindo Vidas”, como afirma Vidal de Freitas. O juiz explica que a lei estadual 6.344, de 2013, cria uma reserva de vagas de trabalho nos contratos de obras e serviços do ente público com as empresas privadas para apenados, como também oferece ajuda de assistente social, psicólogo, capacitação, trabalho e no acompanhamento e auxílio às crianças e adolescentes filhos de presos com o objetivo de inserir detentos no mercado de trabalho, reduzindo a criminalidade e reincidência no sistema prisional no Estado.
“Muitas vezes se pensa que a reinserção social é dar uma nova oportunidade, mas não é somente isso: a sociedade ganha com cada pessoa que deixa a prática de crime. Me dá muito mais satisfação saber que uma pessoa para a qual concedi o benefício volta para a sociedade de uma maneira correta, do que ter que prender novamente”.
No próprio Tribunal de Justiça, trabalhando com o juiz Vidal, há ex-detentos que tiveram oportunidades de estudo e trabalho e hoje encontram-se reinseridos na sociedade.
O programa serve como exemplo a todos os operadores de Direito, pois ele interfere diretamente na reinserção social dos apenados, diminuindo, assim, a violência e o crime na sociedade
Anne Cavalcante explica como o programa tem sido uma virada de chave na sua mentalidade: “Trabalho do outro lado da moeda, na fase pré-processual em uma delegacia, então eu queria ver como era depois da sentença deles. Eu entendo que quando a pessoa comete um crime, é porque já falhamos muito com ela enquanto sociedade, como um todo. Claro que existem casos e casos e também não exime a culpa do indivíduo. Mas realmente devemos repensar muita coisa”
“Esse programa é um diferencial importante para a sociedade, os alunos vão exercitando e aprendendo sobre a execução penal e principalmente conhecendo uma realidade que é muito desconhecida da população brasileira, que é a realidade do sistema prisional no Brasil. É preciso revolucionar o modo positivista de enxergar o Direito, partindo de uma prerrogativa mais humanística”, explicou Lucas Villa.
A superlotação dos presídios e a urgência por cada vez mais vagas dentro do sistema prisional demonstra a necessidade de uma mudança de mentalidade na sociedade como um todo, principalmente dos operadores de Direito, para que possam promover a implantação de métodos que reduzam os índices de reincidência.
O iCEV fechou mais um convênio com o TJ-PI para a implantação de um Juizado Especial Civil nas dependências da nossa faculdade. Será um anexo do Núcleo de Práticas Jurídicas que receberá demandas cíveis da comunidade em geral, e servirá como espaço para desenvolvimento de estágios curriculares supervisionados por nossos alunos.
Avenida Presidente Kennedy, 1100 - São Cristovão - 64052-335 - Teresina-PI
Telefone: (86) 3133-7070 - E-mail: contato.icev@somosicev.com
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