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05 mar
Impossibilidade de requisição administrativa de bens públicos destinados à saúde

Constituição prevê condomínio legislativo e administrativo em matéria de saúde

Imagem: Agência Brasil

A requisição administrativa é importante instrumento à disposição do Poder Público para a salvaguarda de interesses sociais ameaçados por situações de perigo atual ou iminente. Trata-se de medida excepcional, pela qual o Estado utiliza compulsoriamente bens e/ou serviços de terceiros para que possa responder prontamente à situação de emergência que esteja a colocar em risco interesse público de especial relevância.

Nesse sentido se insere a disposição do artigo 3º, VII, da Lei nº 13.979/2020, que prevê, como alternativa de ação a ser adotada pelas autoridades estatais no enfrentamento da crise de saúde pública causada pelo novo coronavírus, a possibilidade de “requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”.

De fato, no cenário emergencial vivenciado no país em decorrência da COVID-19, a requisição administrativa se apresenta muitas vezes como mecanismo imprescindível para garantir o regular e eficaz atendimento à crescente demanda por produtos e serviços médico-hospitalares decorrente da disseminação da doença no território nacional. Nesse contexto, caso necessário para a adequada proteção da vida e saúde da população, pode o Estado requisitar medicamentos, insumos terapêuticos, equipamentos médicos, espaços e até serviços hospitalares, com posterior pagamento de justa indenização aos prejudicados.

Questão importante acerca da requisição administrativa para fins de enfrentamento às dificuldades causadas pela COVID-19 consiste em saber se o ato requisitório poderia recair sobre bens públicos. A indagação é pertinente em razão de serem os entes públicos titulares de grande parte dos materiais e serviços de saúde no Brasil, os quais estariam sujeitos à requisição se admitida a incidência da medida sobre eles. Dessa observação se percebe a relevância prática da questão, que inclusive já se manifestou em casos recentes de requisições formalizadas pela União que acabaram atingindo bens pertencentes a Estados-membros, embora não tenham sido especificamente contra eles direcionadas.

Examinado sistematicamente o arcabouço normativo da Constituição Federal, em especial a própria formatação constitucional do instituto da requisição, aliado à ótica do federalismo cooperativo e repartição de competências na área de saúde pública, extrai-se a conclusão de que, em regra, a requisição prevista no artigo 3º, VII, da Lei nº 13.979/2020 não pode incidir sobre bens e serviços públicos.

A requisição administrativa é instituto que encontra fundamento de validade na Constituição da República, especificamente no artigo 5º, XXV, segundo o qual “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”. Esse é o desenho fundamental da figura da requisição administrativa no Direito brasileiro, cuja essência há de ser observada pela normatização infraconstitucional que também disponha sobre o tema.

O mencionado preceito constitucional indica expressamente a natureza do bem sobre o qual pode recair a requisição administrativa: propriedade particular. Portanto, o texto constitucional alça à condição de pressuposto de legitimidade da requisição a natureza privada do bem requisitado.

Dessa forma, por explícita disposição constitucional, a requisição administrativa só pode incidir sobre bens particulares, estando os bens públicos – ou afetados à destinação pública – excluídos da sujeição à ordem requisitória emanada de ente estatal.

Apenas excepcionalmente, em contexto de declarado estado de defesa (artigo 136, §1º, II) ou estado de sítio (artigo 139, VII), é que a Constituição admite que a requisição possa abranger bens públicos, uma vez que inexiste, nos dispositivos constitucionais que tratam da requisição nas hipóteses de estado de exceção, a limitação da incidência do instituto à “propriedade particular” constante no artigo 5º, XXV.

A limitação constitucional quanto à incidência da requisição administrativa apenas sobre bens particulares visa essencialmente resguardar a autonomia dos entes federados, impedindo que eles possam avançar sobre bens e serviços uns dos outros, situação que poderia ocasionar conflitos insolúveis e abalar a harmonia do sistema federativo brasileiro.

Importante realçar que, embora a requisição administrativa esteja prevista também em diplomas normativos infraconstitucionais nos quais não há expressa menção à natureza privada dos bens requisitados (como ocorre no já mencionado artigo 3º, VII, da Lei n.º 13.979/2020),  certo é que tais dispositivos devem ser interpretados e aplicados em consonância com a previsão do artigo 5º, XXV, da Constituição Federal, base normativa acerca do instituto da requisição administrativa e que afasta a possibilidade de sua incidência sobre bens públicos, ao menos fora das circunstâncias de estado de defesa ou de sítio.

Além de derivar dos próprios contornos constitucionais do instituto, a impossibilidade de incidência da requisição administrativa sobre bens públicos afetados à prestação de serviços na área de saúde decorre também da arquitetura do federalismo brasileiro, especialmente do aspecto relacionado à divisão de competência entre os entes federados.

A Constituição da República dispõe competir à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre proteção e defesa da saúde (artigo 24, XII, CF), bem como cuidar da saúde e assistência pública (artigo 23, II, CF). Os artigos 196 e seguintes da Lei Maior também estabelecem competir ao Estado (nos seus diversos níveis federativos) o desempenho de programas e ações de saúde, direito fundamental de toda a população.

A Carta Magna prevê, assim, um condomínio legislativo e administrativo em matéria de saúde, impondo a todos os entes federativos a responsabilidade de promover ações de saúde no âmbito de suas capacidades e competências.

Especificamente quanto às ações de saúde relacionadas ao combate à pandemia do novo coronavírus, o Supremo Tribunal Federal já assentou, por diversas vezes e com eloquência, o caráter concorrente das atribuições e responsabilidades da União, Estados, Distrito Federal e Municípios relativamente à adoção das providências necessárias ao enfrentamento da emergência de saúde que grassa no país desde meados de março de 2020.

Dessa forma, constituindo dever da União, Estados, Distrito Federal e Municípios prestar serviços de saúde à população, de forma conjunta e colaborativa, especialmente no atual cenário de crise sanitária provocada pelo novo coronavírus, afigura-se imprescindível manter em poder daqueles entes todos os bens e serviços de que disponham para o exercício regular e eficiente de sua missão constitucional. Daí porque incabível a formalização de requisição administrativa de bens públicos destinados à prestação dos serviços de saúde, sob pena de embaraçar o desempenho de competência constitucional dos diversos entes que compõem a Federação brasileira.

Admitir a possibilidade de requisição administrativa de bens e serviços públicos para o enfrentamento de problemas relacionados à crise sanitária que vigora no país implicaria, por outro lado, em impedir o pleno exercício das competências em matéria de saúde do ente afetado, em evidente abalo ao sistema federativo brasileiro.

Nessa linha de raciocínio, o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se manifestar acerca da impossibilidade de requisição administrativa de bens públicos ainda no ano de 2005, quando concedeu a ordem no mandado de segurança nº 25.295/DF, impedindo a União de requisitar bens e serviços do Município do Rio de Janeiro afetados à prestação de serviços de saúde.

Particularmente no atual contexto de enfrentamento da situação de emergência causada pela COVID-19, a Suprema Corte também reconheceu a impossibilidade de que requisições formalizadas pela União alcançassem bens e insumos adquiridos por Estados a fim de serem empregados na execução de políticas públicas de saúde para fazer frente à crise sanitária.

Trata-se de posição que há de continuar sendo reverberada com energia pelo Supremo Tribunal Federal, em estrito respeito à Constituição da República e à ideia de federalismo cooperativo nela plasmado, “exigindo que entre os entes federados ocorra a prevalência de soluções consensuais e informadas pela maximização do bem-estar da sociedade, não sendo legítima uma disputa autofágica entre diferentes esferas públicas em detrimento do cidadão[2].

 

Publicado por JOTA

 

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