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23 abr
Para que serve o Direito Penal?

Nos manuais de Direito Penal, a resposta é simples e pretensamente óbvia: com a cominação, aplicação e execução de penas, sua finalidade é proteger os bens jurídicos mais relevantes.

 

A assertiva não é amparada por substrato empírico e traduz uma dogmática ensimesmada que fecha os olhos à realidade social. É fruto de um Direito Penal que desconhece a Criminologia.

 

Direito Penal é expressão equívoca, pois serve para designar três fenômenos distintos: (a) legislação penal; (b) poder punitivo e (c) Direito Penal propriamente dito. A divisão é de Eugenio Raúl Zaffaroni, maior penalista e criminólogo da América Latina.

 

A confusão dos conceitos – que deve ser afastada – tem a lamentável consequência de tornar incerto o papel dos juízes dentro do sistema penal.

 

Legislação penal

É o conjunto de leis que preveem as condições pelas quais o poder punitivo pode ser licitamente aplicado. Ao mesmo tempo em que, ao iniciar o processo de criminalização primária, habilita o poder punitivo (com a criação de tipos penais), também o limita, impondo-lhe balizas.

 

Poder punitivo

É o poder de fato, político mais do que jurídico, expresso pelo Estado de diversas formas: (1) poder disciplinador positivo, que permite às agências policiais fiscalizar as pessoas e restringir seus direitos fundamentais (p. ex., buscas pessoais em suspeitos); (2) sistema penal subterrâneo, o qual se caracteriza pelo exercício do poder punitivo em desconformidade com os parâmetros legais (p. ex., execuções extrajudiciais perpetradas por milícias e grupos de extermínio); (3) sistema penal paralelo, que, embora declaradamente não se situe no âmbito do poder punitivo, tem a mesma função de promover o controle social com a restrição da liberdade individual ou de outros direitos (p. ex., internações psiquiátricas com a finalidade de retirar indivíduos indesejáveis de circulação); e (4) sistema penal formal, em que o poder punitivo é exercido de forma lícita após ser depurado pelo devido processo legal.

 

É difícil conceituar o poder punitivo em razão de seu caráter difuso, mas pode ser compreendido como uma pulsão estatal de restringir direitos de determinados indivíduos e de controlá-los, preventiva ou repressivamente, por meio das agências policiais, a fim de que não violem a ordem social.

 

Três são as principais características estruturais do poder punitivo: (a) potencial de violar direitos fundamentais; (b) tendência a expandir-se em detrimento do Estado de Direito e (c) seletividade.

 

Não pode haver dúvida de que o poder punitivo tem o potencial de violar direitos fundamentais: em uma persecução penal, até mesmo o simples investigado pode ter a sua liberdade restringida e o seu patrimônio tornado indisponível. Também são atingidos os direitos à privacidade, honra etc.

 

Mesmo antes do inquérito policial, direitos fundamentais são violados. É o que se passa com a busca pessoal feita em cidadão que, ao andar pela rua, é obrigado a colocar suas mãos na parede, ter o seu corpo apalpado, e seus objetos vistoriados. Independentemente da legalidade ou não do procedimento – e ele será regular somente se houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de objeto ilícito (art. 240, §2º do CPP) –, é inquestionável que há restrição de direito fundamental.

 

Reparem que não estou sequer me referindo aos casos de sistema penal subterrâneo, em que as agências atuam de forma criminosa, como as execuções sumárias de suspeitos e as abordagens policiais desnecessariamente violentas, tal qual a noticiada em 22/03/2021 pelo site The Intercept Brasil, em que uma mulher foi agredida – com esganadura e utilização de spray de pimenta – por um policial militar, que filmava a ação.

 

Já a seletividade refere-se à limitada capacidade operacional do sistema penal e aos critérios que as agências se utilizam para darem início ao processo de criminalização secundária.

 

É premissa inconteste na Criminologia a existência de uma cifra oculta da criminalidade. Ela representa a porcentagem de pessoas que, embora tenham praticado um crime, não foram selecionadas pelo sistema penal formal.

 

A seletividade é uma característica estrutural do poder punitivo. A maioria esmagadora da sociedade já praticou, ao menos uma vez, infração penal. São fatos corriqueiramente praticados pelos “cidadãos de bem”: embriaguez ao volante, injúria, violação de direito autoral, perturbação de sossego etc. Para que não houvesse cifra oculta, todos deveriam ser punidos, o que evidentemente não é viável: “As agências de criminalização secundária têm limitada capacidade operacional e seu crescimento sem controle desemboca em uma utopia negativa. Por conseguinte, considera-se natural que o sistema penal leve a cabo a seleção de criminalização secundária apenas como realização de uma parte ínfima do programa primário” (Zaffaroni).

 

Ao contrário do que se poderia razoavelmente supor, a seletividade não leva em conta a gravidade do crime, mas a vulnerabilidade da pessoa que o praticou: “A regra geral da criminalização secundária se traduz na seleção: a) por fatos burdos ou grosseiros (a obra tosca da criminalidade, cuja detecção é mais fácil), e b) de pessoas que causem menos problemas (por sua incapacidade de acesso positivo ao poder político e econômico ou à comunicação massiva). No plano jurídico, é óbvio que esta seleção lesiona o princípio da igualdade” (Zaffaroni).

 

Quanto à tendência de o poder punitivo expandir-se, trata-se de consequência lógica do que foi posto nos parágrafos anteriores: se é imensa a cifra oculta da criminalidade; se a criminalização secundária depende da capacidade operacional do sistema penal; então a ampliação daquela capacidade resultará em um poder punitivo cada vez maior.

 

Enfim, para que serve o Direito Penal?

Superada a confusão conceitual entre Direito Penal e poder punitivo, a pergunta desloca-se da Teoria da Pena para a Teoria do Direito Penal. Não se discutem, neste texto, as finalidades das penas, que são manifestações do poder punitivo. Basta ter em mente que elas: (a) são potencialmente violadoras de direitos fundamentais; (b) aplicam-se de modo seletivo e (c) tendem à expansão. Como consequência, devem ser juridicamente limitadas.

 

O Direito Penal, então, é a ciência jurídica que, sem ignorar a realidade do poder punitivo, deve interpretar a legislação, com especial ênfase às normas constitucionais, e orientar as decisões judiciais, no sentido de limitar o poder punitivo, visando fundamentalmente à concretização dos direitos fundamentais.

 

A função dos juízes criminais confunde-se parcialmente com a função do Direito Penal (não do poder punitivo): devem interpretar a legislação e limitar eventuais irracionalidades que se lhes apresentem em um caso concreto, utilizando-se, para tanto, de instrumentos fornecidos pela dogmática (Direito Penal).

 

O Estado Democrático de Direito surgiu justamente – ao menos no plano discursivo da Teoria do Direito [2] – para limitar os poderes absolutos do Estado.

 

A desconfiança do poder é inerente à passagem dos Estados Absolutistas aos Estados Democráticos de Direito. É uma conquista civilizatória, por exemplo, a existência de recursos contra decisões judiciais, uma salutar política de freios e contrapesos, neste caso, interna ao próprio Poder Judiciário. Não se trata de desconfiar de um julgador específico, nem há qualquer demérito ao prolator da decisão.

 

Da mesma forma deve ser analisada a desconfiança do poder punitivo. A absolvição de um indivíduo apontado como culpado por agentes policiais não é um juízo de reprovação ou desconfiança particular contra estes, mas simples controle inerente à função jurisdicional.

 

A legitimidade do controle de um poder sobre outro deveria ser uma premissa óbvia em uma democracia e tranquilamente acatada pelos agentes públicos. Na Enciclopédia Política de Diderot e d´Alembert, escrita no século XVIII, já se afirmava: “A experiência de todos os tempos ensina que, quanto maior é o poder dos homens, mais eles são levados por suas paixões a abusar dele”. [3]

 

No Direito Administrativo, não cabe ao Poder Judiciário se limitar a acolher a pretensão do Estado-Administração; no Direito Tributário, não é sua função simplesmente homologar a pretensão do Fisco.

 

No Direito Penal, o raciocínio é idêntico. Não cabe aos juízes criminais o papel de mero homologador da atividade policial. Fosse assim e o devido processo legal seria um simulacro; o Direito Penal, ocioso; e o Poder Judiciário, enfim, desnecessário.

 

Historicamente, quando o pêndulo político se afasta dos ares democráticos, juízes criminais que desempenham corretamente seu papel de limitar o poder punitivo correm riscos e passam a sofrer pessoalmente seus efeitos, na qualidade de investigados e réus, em persecuções criminais ou em processos administrativos disciplinares: “Quanto mais dependente das agências políticas for a estrutura da judicial, maiores serão estas pressões e menor seu potencial crítico: o recrutamento de operadores tenderá a excluir potenciais críticos e o verticalismo a controlar quem pudesse ter dissimulado, por ocasião de seu ingresso, sua capacidade de observação da realidade” (Zaffaroni).

 

Publicado por Blog Justificando 

12 abr
Direito ao esquecimento e a LGPD

A lei 13.709/18 - LGPD - traz regras que servirão para nortear a aplicação dos direitos à informação e liberdade de expressão quando em confronto com o direito ao apagamento de dados, como referido na lei nacional, mais conhecido como "direito ao esquecimento".

A internet é, sem dúvida, um avanço científico-tecnológico dos mais importantes dos últimos cem anos, festejada como ferramenta de pesquisa e disponibilização de informações nos mais variados ramos do interesse humano. Desse ponto de partida, já se pode avaliar sua relevância para o direito à informação na atualidade.

No entanto, é também já notório o poder destrutivo que a internet vem causando à vida particular dos indivíduos em face da perenidade, velocidade e alcance de informações que, por razões de foro íntimo, não se desejaria expor. A internet se revela fora do controle da esfera estatal e pessoal, colocando à disposição de uma quantidade indiscriminada de pessoas os dados particulares das demais, disponibilizando novos e antigos fatos, a qualquer tempo, modo e lugar.1 E o fato é que pode existir um interesse da pessoa em garantir a memória “certa” a respeito de seus dados pessoais, assim como que erros cometidos no passado não lhe tragam indefinidamente prejuízos cujas consequências já enfrentou. Alberga-se tal interesse por meio do chamado “direito ao esquecimento“.

Uma primeira observação que se pode fazer em relação ao direito ao esquecimento reside na falta, em especial no âmbito da legislação, de aceitação plena ao uso da expressão “direito ao esquecimento“, o que implica no fato de que as normas jurídicas ainda não a adotam uniformemente. No direito estrangeiro, vê-se, por exemplo, o Regulamento da União Europeia (UE) 2016/679, cujo art. 17º, que trata do direito ao apagamento de dados e, em seguida, como um subtítulo, o “direito a ser esquecido“. Ademais, no considerando 66 da mesma norma consta também a declaração “direito a ser esquecido no ambiente por via eletrônica“.2

A expressão direito ao esquecimento traduz, na verdade, o de não se conceder acesso a informações pessoais cuja publicidade se queira restringir. A palavra esquecimento é apenas retórica. A ideia subjacente é o ato de apagar uma informação e o esquecimento desta é a consequência desejada pelo titular do dado. É compreensível que exista o interesse da pessoa em garantir a memória certa a respeito de seus dados pessoais, assim como que erros cometidos no passado não lhe tragam indefinidamente prejuízos cujas consequências já enfrentou.

Ocorre que, para outras pessoas, a informação e a liberdade de expressão podem ser igualmente caras. Ao longo da história, aqueles que se viram instados a examinar o chamado direito ao esquecimento se viram no dilema de ponderar diversos valores e garantias, especialmente o direito de informação e de memória, assim como da liberdade de imprensa.3 Pedro Trovão do Rosário colocou a questão nestes termos:

O problema essencial, ou ponto de partida do direito a ser esquecido encontra-se na necessidade de encontrarmos parâmetros de concordância entre as liberdades de expressão (compreendida aqui também pelas liberdades de informação e imprensa) e a protecção da vida privada e familiar da pessoa humana (…), os quais não só não são absolutos como inconstantes e, problema seguinte, a efetivação da(s) solução(ões) que encontrarmos“.4

Para esse autor, a regulamentação europeia, já antes aqui mencionada5, está alinhada com a ideia de uma crescente liberdade concedida ao proprietário dos dados, com o correspondente aumento de responsabilidades, constituindo-se em exemplo de um Estado fiscalizador do cumprimento de direitos fundamentais.6 A proposta da norma, portanto, segundo referido autor, seria de que os Estados-Membros conciliem, por meio de lei, o direito à proteção de dados pessoais com o direito à liberdade de expressão e de informação.

Já no âmbito do direito brasileiro, a lei 13.709, publicada em 14 de agosto de 2018, vem trazer novos contornos à proteção de dados também ao nosso país. Neste brevíssimo estudo, fazemos um esforço por compreender como essa norma brasileira pretende enfrentar a questão do direito ao esquecimento, ou seja, quais parâmetros traz para que se estabeleça uma concordância entre as liberdades de expressão e a proteção da vida privada e familiar da pessoa humana.

Antes da vigente LGPD, o direito ao esquecimento tinha pouca regulação legal no Brasil, o antigo Marco Civil da Internet (lei 12.965/14), o Código de Defesa do Consumidor, a Lei de Acesso à Informação e a Lei do Habeas Data), além de uma jurisprudência vacilante. Contudo, a lei 13.709 faz importantes avanços no tema. Vejamos.

De logo, o chamado Novo Marco Civil da Internet cria órgãos para o trato específico da proteção de dados na internet. Ademais, institui regras preventivas, tais como o prévio consentimento expresso ao tratamento de dados, a possibilidade da reclamação administrativa, por meio dos órgãos de defesa do consumidor e a inversão do ônus da prova em casos judiciais, nas hipóteses que menciona. Afora isso, a lei também cria sanções de várias espécies, da mais simples advertência a pesadas multas e até a impossibilidade de permanência na atividade do controlador de dados que infringe a lei. É sem dúvida uma norma de forte cunho protetivo aos direitos dos usuários da internet.

No que diz respeito aos princípios norteadores da LGPD, estão estes destacados no art. 3º, dentre os quais, sem qualquer ordem de hierarquia, a garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal, e a proteção da privacidade e a proteção dos dados pessoais, na forma da lei, assim como a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Esta enunciação é a fonte primária para o aplicador da lei em seu enfrentamento a cada caso concreto.

Notamos que a lei brasileira não adotou a expressão direito ao esquecimento. Em seu lugar, podemos encontrar a palavra “eliminação“, cujo significado vem expresso no inciso XIV do art. 5º da lei como a “exclusão de dado ou de conjunto de dados armazenados em banco de dados, independentemente do procedimento empregado“. Nessa razão, este direito está mais conexo com a ideia do impedimento à manutenção da publicidade acerca de algo que se deseja seja esquecido, nos casos e circunstâncias em que a lei permite tal privacidade.

O aspecto mais relevante da lei para o tema do direito ao esquecimento se encontra nessa prerrogativa que tem o titular dos dados pessoais a obter do controlador, em relação aos seus dados por ele tratados, a eliminação destes, a qualquer momento e mediante requisição. E, o mais importante, é que se pode antever, nas hipóteses em que o tal direito é excepcionado, aquelas situações em que prevaleceriam outros direitos. Com efeito, a lei excepciona de logo os casos de cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador; de estudo por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais; de transferência a terceiro, desde que respeitados os requisitos de tratamento de dados dispostos na Lei; ou uso exclusivo do controlador, vedado seu acesso por terceiro, e desde que anonimizados os dados. A identificação das situações de legítima eliminação dos dados aqui prevista, note-se bem, representa já um parâmetro a ser seguido pelos usuários assim como para os estudiosos e operadores do direito ao esquecimento.

Afora esse ponto específico, podemos observar na lei brasileira uma busca pela proteção das informações desde a concepção, pois o tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado mediante o fornecimento de consentimento pelo titular. Tal consentimento se refere a uma “manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada” (art. 5º, XII da LGPG).

Preventivamente, pois, a norma veda o tratamento de dados pessoais mediante vício de consentimento, devendo este se dar por escrito e referir-se a finalidades determinadas, considerando-se nulas as autorizações genéricas para o tratamento de dados pessoais. Em reforço dessa determinação, a revogação do consentimento pode ser feita a qualquer tempo, mediante manifestação expressa do titular, por procedimento gratuito e facilitado.

É quando trata o legislador dos dados pessoais sensíveis que melhor podemos elucidar de que forma pretende a lei prevenir que haja desobediência aos direitos albergados. Os dados sensíveis são aqueles de ordem pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, referente à saúde ou à vida sexual e dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural.

De acordo com o art. 11 do já chamado Novo Marco Civil da Internet, o consentimento dado pelo titular ao tratamento de dados pessoais sensíveis deverá se dar de forma específica e destacada, assim como para finalidades específicas. Ou seja, se os dados se referem a origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, referente à saúde ou à vida sexual e dado genético ou biométrico, o tratamento deverá ter uma finalidade especifica, uma justificativa para tanto, assim como o consentimento deverá ser específico. Ademais, sem fornecimento de consentimento do titular, o tratamento de dados sensíveis somente poderá ocorrer em situações bem específicas, conforme dispõem os artigos 11 a 13 da LGPD.

Um dos maiores acertos da norma, não se porá dúvida, é a de instituir o direito de petição administrativa à Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD (§ 1º do art. 18), corrigindo o grave problema de ter o usuário de recorrer ao Poder Judiciário para corrigir danos ao seu direito.

Em conclusão, no que tange ao direito à proteção de dados na internet, pode-se dizer que a publicação, no Brasil, da lei 13.709/18 dotará o país de uma legislação que tem ferramentas para interferir positivamente na sociedade, amparando os usuários da internet, assim como com regras que poderão contribuir para resoluções relacionadas a direito ao esquecimento, ou apagamento de dados, como referiu a lei nacional.

Publicado por Blog Migalhas 

22 mar
Advocacia Empresarial – Como abrir um escritório especializado

Diariamente as empresas se deparam com questões jurídicas e necessitam do suporte de um advogado especializado em advocacia empresarial.

Seja na hora de contratar um funcionário, redigir um contrato, recolher tributos, ou ainda, instituir boas práticas internas, saber o que diz a legislação é essencial e pode evitar inúmeros problemas no futuro. Em um mercado que estimula cada vez mais o empreendedorismo, se especializar em advocacia empresarial pode ser uma ótima oportunidade.

O Direito Empresarial é um ramo do Direito que oferece diversas possibilidades aos escritórios de advocacia. De olho nesse mercado, cada vez mais escritórios buscam focar sua atuação, trazendo soluções diversas aos problemas tradicionais do universo corporativo.

Durante muito tempo, as empresas contratavam escritórios especializados apenas com o objetivo de administrar seus processos. Porém, hoje, esse cenário vem mudando. Cada dia mais é possível encontrar empresas dispostas a investir não apenas no contencioso, como também no consultivo. A maioria dos negócios hoje quer regularizar suas práticas, pois sabe que, menos processos na Justiça, pode significar uma boa economia no orçamento e mais agilidade ao negócio. Como a maioria dos departamentos jurídicos não tem tempo ou equipe para cuidar de inúmeras questões das empresas, a tendência é buscar junto aos advogados especializados uma boa solução.

Embora o ramo do Direito Empresarial seja bastante promissor, antes de montar um escritório de advocacia empresarial o advogado deve se planejar. A advocacia é um mercado bastante competitivo. Assim, independentemente do ramo de atuação, o advogado deve estar preparado não apenas tecnicamente, como também para empreender de forma estratégica.

Saber como abrir e gerenciar um escritório de advocacia empresarial é o primeiro passo para se lançar no mercado da maneira mais preparada possível. Assim, além de conhecer os modelos societários e tipos de tributação, o advogado também deve se preparar para questões mais estratégicas, tais como, ter ou não ter sócios, como escolher seu nicho de atuação, como montar um plano de negócios, entre outras.

Se você é um advogado e pretende se lançar no mercado da advocacia empresarial, este material é para você! Através dele buscamos esclarecer desde as questões mais básicas sobre a formalização do seu negócio, até fatores mais estratégicos envolvendo a definição dos seus serviços, além de aspectos gerais do mercado.

Esperamos através deste post que você consiga compreender as principais questões relativas à abertura de um escritório de advocacia empresarial e assim se sinta mais preparado para atuar no Direito Empresarial e conquistar o sucesso através do seu escritório!

1. O mercado de Direito Empresarial

Hoje existem no Brasil empresas dos mais variados portes e nichos. Porém, a realidade das micro e pequenas empresas costuma ser bastante diferente dos médios e grandes negócios. Embora quando se trata de consequências jurídicas, o porte de uma empresa pouco importa, é fundamental compreender que no mercado empresarial existem diferenças tanto na demanda quanto na disponibilidade na hora de contratar um escritório de advocacia. Em outras palavras, a capacidade financeira para investir em serviços jurídicos varia bastante de uma empresa para outra.

Originalmente, as grandes empresas brasileiras contratavam grandes escritórios seja para a solução de questões pontuais, seja para o acompanhamento de seus processos. Hoje, no entanto, essa realidade vem mudando. Como todo empreendedor sabe as consequências de um Judiciário moroso e pouco eficiente, vale mais investir em prevenir problemas na Justiça, do que remediá-los. Assim, a tendência é que mais e mais empresas contem com o auxílio de um escritório especializado para regularizar sua atividade de acordo com as diretrizes da legislação.

Dentro do panorama de atuação dos escritórios de advocacia empresarial, o que se observa é que, assim como em outros ramos do Direito, os advogados tendem a se especializar também de acordo com os diferentes tipos de clientes. Assim, não é difícil encontrar escritórios de direito empresarial focados em pequenas empresas, ou até mesmo, nas startups.

Na hora de definir qual é o seu nicho de atuação, o advogado deve pesquisar bastante e enxergar as oportunidades que o mercado oferece. O ideal é sempre buscar contatos e oportunidades no mercado local, que se mostrem como potenciais clientes. Se você não sabe, por exemplo, quantas empresas existem na região do seu futuro escritório, vale a pena consultar órgãos como o SEBRAE ou ainda Câmara de Comércio. Algumas vezes, as próprias prefeituras também contam com dados sobre as empresas locais.

Construir uma boa rede de networking e participar de eventos onde estão seus potenciais clientes também é uma boa maneira de pesquisar o mercado e entender de que forma seus serviços jurídicos podem ajudar seu público.

Junto com a pesquisa de mercado, também é recomendado construir um plano de negócios antes mesmo de dar os primeiros passos rumo à abertura do seu escritório. Hoje existem diversas metodologias para a construção de um plano de negócios, porém, mesmo as técnicas mais tradicionais para a montagem de um plano podem servir à um escritório de advocacia.

2. Serviços jurídicos focados no público empresarial

O Direito Empresarial é um ramo do Direito que regulamenta tanto as atividades empresariais, quanto do próprio empresário. Escritórios que atuam nesse segmento basicamente cuidam de todas as questões envolvendo direitos e deveres dos empresários, bem como, das sociedades. Além disso, uma banca especializada em Direito Empresarial desenvolve contratos especiais, cuida de questões envolvendo a propriedade intelectual e realiza auditorias visando encontrar irregularidades que possam prejudicar a empresa.

Boa parte dos escritórios que atua nesse segmento conta com uma atividade predominantemente consultiva preventiva, visando sempre a regularidade tanto da empresa quanto da sua atividade. O advogado, através de uma consultoria jurídica preventiva, é capaz de orientar, induzir boas práticas internas e até gerar uma economia no orçamento da empresa. Isso porque multas e processos são extremamente onerosos dentro do cenário corporativo hoje, além de representarem altos riscos para qualquer empreendimento.

Além dessas questões, um escritório especializado também pode auxiliar com a formalização de contratos, recuperação de crédito, planejamento da carga tributária, regularização de atos na Junta Comercial e até no relacionamento com colaboradores e fornecedores. Atividades como estas, muitas vezes, quando são realizadas sem um bom acompanhamento jurídico, podem conter erros e falhas, representando um grande prejuízo para a empresa.

Durante muito tempo, a maioria dos empreendedores resistia à contratação de um advogado para questões relacionadas ao dia a dia da empresa. Isso porque muitos avaliavam os serviços preventivos como um custo e não como um investimento. Hoje, contudo, a maioria dos empresários conhece a realidade do Judiciário e sabe que o tempo consumido até a conclusão de um processo judicial pode custar caro para a empresa. Por isso, o mercado da advocacia empresarial vem crescendo cada dia mais. E, atualmente, mesmo empresas com menor porte estão dispostas a investir nesse tipo de serviço, desde que os honorários acompanhem a capacidade financeira dos pequenos negócios.

Para quem pretende atuar no ramo da advocacia empresarial, uma boa dica é tornar a prestação de serviços eficiente e prática, falando a mesma linguagem do empresário. Ao contrário do cliente pessoa física, as empresas precisam não apenas de resultados, como também de números, portanto é essencial que quem deseja atender a este público conte com uma gestão profissionalizada, capaz de prestar o suporte ao cliente da forma mais profissional e eficaz possível.

Para advogados que pretendem atuar no ramo da advocacia empresarial, o uso de ferramentas como um software jurídico, por exemplo, pode ser uma ótima forma de otimizar as rotinas do seu escritório, proporcionando mais agilidade e eficiência na hora do atendimento a clientes na advocacia e e prestar serviços jurídicos.

3. Formalização de um escritório de advocacia empresarial

Para ser dono de um escritório de advocacia empresarial é fundamental que o advogado tenha sido aprovado no exame da Ordem e tenha sua carteira profissional. Além disso, é necessário regularizar a atividade do escritório junto à OAB. A própria Lei n.º 6.839/80 determina que os advogados registrem seus respectivos escritórios para que haja a fiscalização de suas atividades.

Um escritório de advocacia empresarial pode contar com diferentes modelos societários. Assim, é fundamental não apenas fazer os registros na Ordem, como também tomar decisões importantes tais quais empreender sozinho ou com mais advogados. Ter ou não ter sócios, dentro desse contexto, é uma questão crucial, já que traz implicações práticas para o dia a dia do escritório.

3.1. Ter ou não ter sócios?

A decisão sobre ter sócios ou administrar um escritório de advocacia sozinho é um passo importante e que demanda uma boa reflexão do advogado. Contar com um ou mais sócios pode significar a divisão de despesas e a ampliação de competências para o seu escritório. Por outro lado, conflitos na sociedade podem trazer muita dor de cabeça e até levar ao fechamento das portas. Por isso, é fundamental escolher bem. Além de uma boa dose de afinidade e habilidades complementares, também é necessário alinhar a divisão de tarefas, investimentos, participação nos resultados, honorários e as responsabilidades relativas à administração do escritório.

3.2. A sociedade unipessoal na advocacia

Para quem pretende abrir um escritório sozinho, vale mencionar que em 2016, com a Lei n.º 13.247/16 foi regulamentada a chamada “sociedade unipessoal ou individual” na advocacia. Neste modelo, o advogado que decide empreender sozinho conta praticamente com as mesmas vantagens das sociedades de advogados. Assim, linhas de crédito mais favoráveis, seguros e regime tributário diferenciado também podem beneficiar os escritórios que contam apenas com um sócio.

Assim como as demais sociedades de advogados, a sociedade unipessoal não pode ter as mesmas características de uma sociedade empresária, bem como, não poderá contar com um nome fantasia ou realizar qualquer atividade que seja estranha à advocacia.

A denominação jurídica deste tipo de sociedade será de “Sociedade Individual de Advocacia”, sendo que o advogado não poderá integrar outra sociedade de advogados, ou mesmo, outra sociedade individual.

Em termos de responsabilidade, vale a pena destacar que o advogado nesse modelo societário responde de forma subsidiária e ilimitada pelos danos causados no exercício da profissão.

3.3. A sociedade de advogados

Conforme determina o Estatuto da OAB, além da sociedade unipessoal, o advogado também pode empreender na forma de sociedade simples de prestação de serviços jurídicos da advocacia. Este tipo de sociedade é formalizada através do registro do contrato social no Conselho Seccional da OAB, localizado na base territorial em que o escritório estiver.

A sociedade de advogados possui regulamentação própria e conta tanto com sócios patrimoniais, como também sócios de serviço. Ambos devem contribuir com a sociedade prestando serviços jurídicos, porém, somente os sócios patrimoniais devem ser responsáveis pela integralização do capital social.

O advogado que pretende constituir uma sociedade de advogados deve ter em mente que este tipo de sociedade é complexa, já que além da regulamentação tradicional do Código Civil, a sociedade de advogados deve atender às regras impostas pelos regulamentos da OAB. Trata-se, portanto, de um modelo societário bastante sui generis, o que implica em uma redação minuciosa do contrato social.

Uma boa dica para advogados que pretendem formalizar um escritório jurídico no formato de sociedade de advogados é usar um acordo de sócios. Esse instrumento pode trazer maior segurança para as questões internas, sem que isso implique em alterações significativas do contrato social.

Por fim, quem decide atuar na forma de sociedade de advogados, vale observar as regras da OAB. Primeiramente, é fundamental que o escritório de advocacia empresarial não ofereça outros serviços que não os jurídicos. Vincular a prestação de serviços do seu escritório à assessoria contábil, consultoria empresarial, ou outra atividade que não seja jurídica é uma prática vedada pela OAB.

Da mesma maneira, a OAB não permite que um sócio em um determinado escritório exerça qualquer atividade considerada incompatível com a advocacia, como é o caso da ocupação de um determinado cargo no Judiciário, Ministério Público ou funções consideradas diretivas dentro da Administração Pública.

 

Publicado por Blog Sajadv

12 mar
10 coisas que aprendi escrevendo a dissertação do mestrado – Por Nazareno Rêis

 

 

Enquanto escrevia a minha dissertação de mestrado, felizmente defendida e aprovada, confirmei algumas suspeitas. Não apenas sobre o tema objeto da minha pesquisa, mas também sobre coisas importantes a respeito do ato de escrever.

Tomei nota de algumas dessas coisas:

 

1 – O tema da pesquisa é sempre muito maior do que pensamos inicialmente

Os gregos antigos imaginavam que o sol era do tamanho de um pé humano. Hoje sabemos que ele é mais de 100 mil vezes maior que a Terra. O que mudou de lá para cá? A quantidade de pesquisa e conhecimento acumulada, é claro. Guardadas as proporções, é mais ou menos isso que acontece com quem se propõe a escrever uma dissertação de mestrado.

 

Frequentemente subestimamos aquilo que não conhecemos bem, outras vezes nos perdemos em sonhos ou ideias difusas e muito abstratas, quando contemplamos algo com atenção. É bom sonhar, mas a ciência e a pesquisa não casam bem com abordagens oníricas.

 

Carlos Salas, um mestre da boa escrita, disse que o cérebro é um animal dentro de outro animal, e que é preciso domá-lo, se quisermos fazer ele trabalhar para nós em algo concreto. A pesquisa é um processo de investigação externa, mas também de domesticação dos impulsos internos da nossa mente, em busca de uma visão equilibrada do mundo.

 

Li em algum lugar que Eça de Queirós teria dito que as páginas mais bem escritas em língua portuguesa seriam aquelas do capítulo sete de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, quando Machado de Assis descreve um delírio do protagonista. “Mutatis mutandis”, é a descrição de um mestrando contemplando seu tema.

 

Primeiro, Brás se transforma num gordo barbeiro chinês; depois, ele vira um livro hirsuto; e, finalmente, volta à sua forma humana, agora montado num hipopótamo que regressa ao começo dos tempos e vai galopando com Brás no lombo rumo ao futuro, passando pelo Éden e outras paragens, conversando com a Natureza em pessoa, até chegar no século final, quando o hipopótamo na verdade se revela como Sultão, o gato de estimação de Brás, brincando com uma bola de papel.

 

Assim também acontece com o tema de pesquisa: primeiro temos uma visão fantástica dele, que nos leva a lugares fabulosos e a soluções rápidas e extraordinárias; à medida que avançamos no processo de filtragem, começamos a perceber as suas formas mais prosaicas e, quando finalmente estamos diante do problema de pesquisa, que é o tema em carne e osso, vemos que o factível está muito aquém do sonho, porém é muito mais palpável. O problema de pesquisa é o gato Sultão brincando com a bola de papel.

 

2- Conhecer a fundo o tema é fundamental

Catão disse: “rem tene, verba sequentur”. Ou seja, tenha a coisa e a palavra se seguirá naturalmente. A dissertação não é um texto ficcional (pelo menos, não deve ser). Assim, não é dado ao autor muita margem para invenção.

 

A maior parte do tempo, ele deve regurgitar as suas leituras, embora isso deva ter um quê de originalidade. Conhecer o tema previamente e de modo seguro é fundamental para que a escrita tenha fluência e sinceridade. Quando tentei escrever alguns capítulos sem ter lido bem os assuntos, surpreendi-me inventando coisas, fantasiando e tentando encaixar frases que me pareciam mais imprescindíveis do que a verdade. Logo apaguei tudo e voltei à leitura.

 

Percebi que não estava preparado para escrever sobre aquilo. O pior é que isso acontece com indesejável assiduidade. Basta baixar um pouco a guarda e a Quimera se senta ao lado. A melhor forma de evitar isso é manter-se em contato cerrado com boas leituras, fazer-se acompanhar dos que já se ocuparam eficazmente do tema de interesse.

 

3 – É bom ter pessoas para conversar sobre o texto

 

É estranho pensar o seguinte: ninguém jamais viu diretamente o próprio rosto, nem ouviu a própria voz à distância. Claro, podemos dizer que já nos vimos no espelho ou alguma superfície polida qualquer; ou que já ouvimos uma gravação da nossa própria voz. Isso pode ser verdade, mas prova apenas que vimos ou ouvimos um registro externo da nossa imagem e da nossa voz.

 

Isso é outra coisa, somos seres relacionais. Precisamos do outro para sermos quem somos e nos compreendermos. A linguagem, ela mesma, é um tabuleiro de símbolos em que cada lance só faz sentido se houver um interlocutor para apreciá-lo e respondê-lo com outro lance apropriado. A execução da escrita, em grande medida, apresenta-se como um monólogo imerso em uma confusa polifonia; à nossa cabeça vêm, nessa hora, intuições mais ou menos inexplicáveis, memórias de leituras anteriores e de conversas sobre o tema, clichês que nos obsedam há anos, enfim o fluxo de consciência em toda a sua riqueza e ambiguidade.

 

Ao trocarmos ideias com um interlocutor qualificado — pode ser o(a) orientador(a), um(a) colega, ou outro alguém capaz — temos oportunidade de refinar ideias próprias, que nos ocorrem de modo aparentemente inextricável. Eventualmente, isso é tão bom que, apenas no esforço para explicarmos uma passagem do texto que estamos escrevendo, nós mesmos constatamos imediatamente algumas inconsistências ou obscuridades que precisam de correção. Ou seja, o outro é o espelho de que precisamos para nos vermos.

4 – A rotina leva à inspiração

 

Um pequeno progresso é um progresso. Não dá para escrever um texto de aproximadamente cem páginas, com qualidade, em apenas poucos dias. A ideia de que a dissertação decorre de uma gestação longa com um parto rápido é muito atraente, mas dificilmente realizável.

 

Na prática, a escrita de uma dissertação se parece mais com o gotejamento de uma nascente do que com uma borrasca no meio da noite. A questão da página em branco já foi resolvida por Hemingway. Ele disse que contra ela só há um remédio: começar a escrever. Simples, porém, difícil. Mas é isso mesmo. Ninguém pode escrever um trabalho, medíocre ou brilhante, se não começar, e se não continuar até o fim. A disciplina é inspiradora.

 

 

5 – Convém respeitar o leitor e estabelecer um vínculo honesto com ele

 

A escrita é uma forma de comunicação interpessoal. Uma das mais importantes, por sinal. Mas, por alguma razão, ela não é compreendida assim à primeira vista, e não é raro que seja usada como instrumento de tortura do leitor (e não me parece uma boa ideia torturar a Banca). Ninguém levaria a sério alguém que, numa conversa, começasse a falar coisas sem sentido ou totalmente fora de propósito (e, pior, não parasse de falar). Mas, na escrita, talvez por falta do item 3 (acima), pode-se acreditar que é possível essa viagem psicodélica em prejuízo do coitado do leitor.

 

Se não nos policiarmos rigidamente, começamos a escrever coisas completamente despropositadas apenas para preencher os espaços em branco da tela e avolumar o trabalho final. É preciso sempre voltar ao texto, relê-lo com cuidado e se colocar no lugar do leitor, para expurgar essas alucinações importunas. Fazendo isso, muitas vezes percebemos que castigo imerecido estávamos impondo ao benevolente indivíduo que se dispôs a ler o nosso trabalho. Em outras palavras, para bem escrever, é preciso deixar de escrever ou apagar muita coisa.

 

 

6 – A dissertação lembra um conto ou uma novela, nunca um romance

 

A informação hoje não é matéria escassa. Pelo contrário, há informação demais disponível para o pesquisador — especialmente em ciências sociais —, quando se faz um recenseamento bibliográfico. Por isso, é preciso não escrever demais, nem falar de coisas impertinentes. Uma dissertação de mestrado, como ensinam os metodologistas, deve concentrar-se em apenas um problema central, embora circundado por subproblemas.

 

Abrir muitas frentes de trabalhos pode ser um erro terrível — que infelizmente quase todos cometemos, e cujo remédio é a releitura e o enxugamento. O que mais se deve evitar é lançar questões para os quais ou não haverá solução no texto, ou, se houver, será pobre demais. Assim, o melhor é evitar referências que não levarão a lugar algum — confesso que não consegui seguir à risca essa verdade. Tchekhov, o mestre da narrativa curta, disse que “se uma espingarda aparece num conto, ela tem que disparar”.

 

Isso também ocorre com a dissertação. Cada elemento que aparece no texto deve ser funcional.  Desde as palavras utilizadas, às frases, aos períodos, aos parágrafos, aos itens, até aos capítulos, tudo deve estar numa boa harmonia, colaborando para a solução do problema de pesquisa. Se uma passagem do texto nos soa esquipática, provavelmente é mesmo.

 

7 – A intertextualidade é o meio ambiente da pesquisa em direito

 

Cada texto que escrevemos é uma releitura da realidade, iluminada pelos textos com os quais tivemos contato anterior. A originalidade total não existe. Particularmente no campo do direito, a pesquisa é muito dependente de textos. Embora haja amplas possibilidades de pesquisa jurídicas diretas sobre a realidade, com dados, números, estatísticas e até experimentos, a verdade é que nossa academia ainda é profundamente dominada pela cultura da pesquisa bibliográfica e da escrita intertextual.

 

Logo, é muito importante ler bons textos para produzir bons textos. Afinal, a escrita é, em grande medida, a imitação do que se leu. A escolha correta das leituras, com a ajuda do orientador, é fundamental. Por um lado, isso evita leituras desnecessárias e, por outro, constitui a comunidade de ideias da qual queremos fazer parte.

 

8 – Um lugar para escrever é indispensável

 

“Grandes coisas acontecem quando o homem e a montanha se encontram”, essa frase, de William Blake, é tão boa que se tornou lugar-comum, e não raro a ouvimos até em filmes de comédia. O que Blake quis dizer foi que a paz das montanhas oferece ao sujeito a atmosfera necessária para pensar densamente em coisas grandes, para além do ramerrão.

 

De fato, a Bíblia é cheia de passagens em que inspirações, visões, conversas diretas com Deus ocorreram no cume de algumas montanhas (Tabor, Horebe, Sinai, Carmelo, Oliveiras, etc.). O pensamento pagão também compartilha da ideia de que a montanha é inspiradora. Basta pensar no Monte Parnaso. Mas não é preciso subir uma montanha para encontrar um lugar inspirador.

 

Felizmente, com as tecnologias que temos hoje, dá para transformar o quarto de um apartamento num ambiente estimulante para o pensamento. Cada um saberá como fazer isso. Eu, particularmente, gosto de que seja algo próximo à Natureza e que tenha uma mesa cheia de papel e canetas. Seja como for, o importante é que o espaço da escrita seja bem delimitado do resto da vida diária.

 

9 – Escrevemos enquanto dormimos

 

Realmente não sabemos nada sobre como o nosso cérebro trabalha. É um estranho que habita em nós e, no entanto, é também o responsável por quem somos. O certo é que ele não segue um padrão celetista de horário de trabalho.

 

Qualquer pessoa que esteja lendo e pensando fixamente sobre um problema certamente tem um caso para contar sobre lampejos que surgiram “do nada” e que pareciam muito interessantes para se perderem. Isso acontece, suponho, porque o cérebro é caprichoso e se parece com aqueles heróis aposentados de filme de ação, que apenas se dispõem a voltar ao trabalho depois de muita insistência da frágil vítima que dele precisa. Mas quando voltam … vêm com tudo.

 

Durante o sono, muitos insights acabam ocorrendo e alguns deles permanecem em nossa memória tão logo acordamos. Nem tudo é brilhante, claro, mas muitas coisas dessas reminiscências do sono podem ser aproveitadas. Para isso, é muito importante também ter um caderno de notas, de modo a poder anotar essas ideias tão logo surjam, porque elas são muito fugazes.

 

10 – Tudo é história

 

Ninguém ainda inventou uma forma melhor de comunicação de um tema do que a narrativa, ou “contação” de história (storytelling). Em português não temos bem estabelecida a diferença de vocábulos para designar uma narrativa real e outra fictícia. É verdade que Câmara Cascudo defendeu o uso da distinção entre “história” e “estória”, como no inglês history/story, mas isso não é sempre praticado.

 

O certo é que mesmo a narrativa de um fato real, que deve ser o caso de uma pesquisa científica, pode se beneficiar dos recursos técnicos e estilísticos da boa literatura de ficção. Não é porque se trata de uma pesquisa que a escrita precisa ser aborrecida. Acho até que, pelo contrário, não deve ser.

 

Além disso, a situação daquele que está escrevendo uma dissertação lembra bastante a de um romancista, embora naturalmente haja diferenças de método, de propósitos e de limites para ambas as tarefas. Para tornar a produção da dissertação um trabalho prazeroso e entregar ao leitor algo bem legível, não vejo por que não se possa empregar, de forma prudente, algumas estratégias de storytelling.

 

Creio que isso melhora muito o clima da escrita e da leitura. Por fim, embora não tenha escrito um romance, durante todo o trabalho me lembrei muito da lição de E. L. Doctorow: “Escrever um romance é como dirigir um carro à noite. Você só consegue enxergar até onde a luz dos faróis alcança, mas pode fazer a viagem inteira assim”.

 

05 mar
Impossibilidade de requisição administrativa de bens públicos destinados à saúde

Constituição prevê condomínio legislativo e administrativo em matéria de saúde

Imagem: Agência Brasil

A requisição administrativa é importante instrumento à disposição do Poder Público para a salvaguarda de interesses sociais ameaçados por situações de perigo atual ou iminente. Trata-se de medida excepcional, pela qual o Estado utiliza compulsoriamente bens e/ou serviços de terceiros para que possa responder prontamente à situação de emergência que esteja a colocar em risco interesse público de especial relevância.

Nesse sentido se insere a disposição do artigo 3º, VII, da Lei nº 13.979/2020, que prevê, como alternativa de ação a ser adotada pelas autoridades estatais no enfrentamento da crise de saúde pública causada pelo novo coronavírus, a possibilidade de “requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”.

De fato, no cenário emergencial vivenciado no país em decorrência da COVID-19, a requisição administrativa se apresenta muitas vezes como mecanismo imprescindível para garantir o regular e eficaz atendimento à crescente demanda por produtos e serviços médico-hospitalares decorrente da disseminação da doença no território nacional. Nesse contexto, caso necessário para a adequada proteção da vida e saúde da população, pode o Estado requisitar medicamentos, insumos terapêuticos, equipamentos médicos, espaços e até serviços hospitalares, com posterior pagamento de justa indenização aos prejudicados.

Questão importante acerca da requisição administrativa para fins de enfrentamento às dificuldades causadas pela COVID-19 consiste em saber se o ato requisitório poderia recair sobre bens públicos. A indagação é pertinente em razão de serem os entes públicos titulares de grande parte dos materiais e serviços de saúde no Brasil, os quais estariam sujeitos à requisição se admitida a incidência da medida sobre eles. Dessa observação se percebe a relevância prática da questão, que inclusive já se manifestou em casos recentes de requisições formalizadas pela União que acabaram atingindo bens pertencentes a Estados-membros, embora não tenham sido especificamente contra eles direcionadas.

Examinado sistematicamente o arcabouço normativo da Constituição Federal, em especial a própria formatação constitucional do instituto da requisição, aliado à ótica do federalismo cooperativo e repartição de competências na área de saúde pública, extrai-se a conclusão de que, em regra, a requisição prevista no artigo 3º, VII, da Lei nº 13.979/2020 não pode incidir sobre bens e serviços públicos.

A requisição administrativa é instituto que encontra fundamento de validade na Constituição da República, especificamente no artigo 5º, XXV, segundo o qual “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”. Esse é o desenho fundamental da figura da requisição administrativa no Direito brasileiro, cuja essência há de ser observada pela normatização infraconstitucional que também disponha sobre o tema.

O mencionado preceito constitucional indica expressamente a natureza do bem sobre o qual pode recair a requisição administrativa: propriedade particular. Portanto, o texto constitucional alça à condição de pressuposto de legitimidade da requisição a natureza privada do bem requisitado.

Dessa forma, por explícita disposição constitucional, a requisição administrativa só pode incidir sobre bens particulares, estando os bens públicos – ou afetados à destinação pública – excluídos da sujeição à ordem requisitória emanada de ente estatal.

Apenas excepcionalmente, em contexto de declarado estado de defesa (artigo 136, §1º, II) ou estado de sítio (artigo 139, VII), é que a Constituição admite que a requisição possa abranger bens públicos, uma vez que inexiste, nos dispositivos constitucionais que tratam da requisição nas hipóteses de estado de exceção, a limitação da incidência do instituto à “propriedade particular” constante no artigo 5º, XXV.

A limitação constitucional quanto à incidência da requisição administrativa apenas sobre bens particulares visa essencialmente resguardar a autonomia dos entes federados, impedindo que eles possam avançar sobre bens e serviços uns dos outros, situação que poderia ocasionar conflitos insolúveis e abalar a harmonia do sistema federativo brasileiro.

Importante realçar que, embora a requisição administrativa esteja prevista também em diplomas normativos infraconstitucionais nos quais não há expressa menção à natureza privada dos bens requisitados (como ocorre no já mencionado artigo 3º, VII, da Lei n.º 13.979/2020),  certo é que tais dispositivos devem ser interpretados e aplicados em consonância com a previsão do artigo 5º, XXV, da Constituição Federal, base normativa acerca do instituto da requisição administrativa e que afasta a possibilidade de sua incidência sobre bens públicos, ao menos fora das circunstâncias de estado de defesa ou de sítio.

Além de derivar dos próprios contornos constitucionais do instituto, a impossibilidade de incidência da requisição administrativa sobre bens públicos afetados à prestação de serviços na área de saúde decorre também da arquitetura do federalismo brasileiro, especialmente do aspecto relacionado à divisão de competência entre os entes federados.

A Constituição da República dispõe competir à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre proteção e defesa da saúde (artigo 24, XII, CF), bem como cuidar da saúde e assistência pública (artigo 23, II, CF). Os artigos 196 e seguintes da Lei Maior também estabelecem competir ao Estado (nos seus diversos níveis federativos) o desempenho de programas e ações de saúde, direito fundamental de toda a população.

A Carta Magna prevê, assim, um condomínio legislativo e administrativo em matéria de saúde, impondo a todos os entes federativos a responsabilidade de promover ações de saúde no âmbito de suas capacidades e competências.

Especificamente quanto às ações de saúde relacionadas ao combate à pandemia do novo coronavírus, o Supremo Tribunal Federal já assentou, por diversas vezes e com eloquência, o caráter concorrente das atribuições e responsabilidades da União, Estados, Distrito Federal e Municípios relativamente à adoção das providências necessárias ao enfrentamento da emergência de saúde que grassa no país desde meados de março de 2020.

Dessa forma, constituindo dever da União, Estados, Distrito Federal e Municípios prestar serviços de saúde à população, de forma conjunta e colaborativa, especialmente no atual cenário de crise sanitária provocada pelo novo coronavírus, afigura-se imprescindível manter em poder daqueles entes todos os bens e serviços de que disponham para o exercício regular e eficiente de sua missão constitucional. Daí porque incabível a formalização de requisição administrativa de bens públicos destinados à prestação dos serviços de saúde, sob pena de embaraçar o desempenho de competência constitucional dos diversos entes que compõem a Federação brasileira.

Admitir a possibilidade de requisição administrativa de bens e serviços públicos para o enfrentamento de problemas relacionados à crise sanitária que vigora no país implicaria, por outro lado, em impedir o pleno exercício das competências em matéria de saúde do ente afetado, em evidente abalo ao sistema federativo brasileiro.

Nessa linha de raciocínio, o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se manifestar acerca da impossibilidade de requisição administrativa de bens públicos ainda no ano de 2005, quando concedeu a ordem no mandado de segurança nº 25.295/DF, impedindo a União de requisitar bens e serviços do Município do Rio de Janeiro afetados à prestação de serviços de saúde.

Particularmente no atual contexto de enfrentamento da situação de emergência causada pela COVID-19, a Suprema Corte também reconheceu a impossibilidade de que requisições formalizadas pela União alcançassem bens e insumos adquiridos por Estados a fim de serem empregados na execução de políticas públicas de saúde para fazer frente à crise sanitária.

Trata-se de posição que há de continuar sendo reverberada com energia pelo Supremo Tribunal Federal, em estrito respeito à Constituição da República e à ideia de federalismo cooperativo nela plasmado, “exigindo que entre os entes federados ocorra a prevalência de soluções consensuais e informadas pela maximização do bem-estar da sociedade, não sendo legítima uma disputa autofágica entre diferentes esferas públicas em detrimento do cidadão[2].

 

Publicado por JOTA

 

08 fev
Tudo sobre o vazamento de dados de 223 milhões de brasileiros

Um vazamento gigantesco de um banco de dados nacional expôs informações confidenciais de 223 milhões de brasileiros, conforme revelou o dfndr lab da empresa de cibersegurança PSafe.

Apontado como o maior vazamento de dados da história do Brasil, o caso deixou muitas pessoas assustadas, devido à quantidade de informações que ficaram expostas, facilitando a aplicação de golpes e fraudes.

O vazamento incluiu CPFs de pessoas falecidas.

Quais dados foram vazados?

Inicialmente, foi relatado o vazamento de 223 milhões de CPFs, incluindo nome, sexo, data de nascimento e outras informações. Posteriormente, a empresa anunciou uma segunda divulgação indevida, desta vez muito mais completa.

Além dos dados citados acima, as duas exposições revelaram:

  • Endereços
  • Números de telefones
  • Dados de veículos (placa, número de chassi etc)
  • Informações sobre CNPJs (razão social, nome fantasia e data de fundação)
  • Detalhes sobre Imposto de Renda
  • Fotos de rosto
  • Benefícios do INSS
  • Informações de servidores públicos
  • Escolaridade
  • Cadastros do LinkedIn
  • Dados financeiros (score de crédito, cheques sem fundo e renda, entre outros)

De onde eles foram retirados e como?

Por enquanto, há apenas suspeitas de onde esses dados teriam sido roubados. Uma das possibilidades apontadas é a de que as informações pertenciam à Serasa Experian, mas a empresa negou que o seu sistema tenha sido invadido.

Também existe a chance de que o gigantesco banco de dados tenha sido formado reunindo informações de vazamentos anteriores, incluindo acessos indevidos aos sistemas de empresas e órgãos públicos.

Devido à falta de detalhes sobre a origem dos dados, ainda não se sabe como aconteceu a ação do(s) hacker(s).

E os responsáveis pela ação?

Segundo a companhia que identificou o vazamento, as bases foram postadas por um cibercriminoso em um fórum online. Além da lista de CPFs disponibilizada gratuitamente, ele vendia o pacote de informações mais completo.

Informações financeiras também foram expostas.

O número de CPFs vazados é maior que o de habitantes. Por quê?

De acordo com o IBGE, o Brasil tem uma população estimada em 212,6 milhões de habitantes, atualmente. Já a quantidade de dados vazados indicou a exposição dos documentos de 223 milhões de pessoas.

A explicação para essa diferença é simples: foram incluídos dados de pessoas falecidas.

Quais os riscos para a população?

Diversos tipos de golpes podem ser aplicados com os dados roubados. Cometer crimes se passando por outra pessoa, abrir conta em banco, realizar saque indevido do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e se inscrever em programas sociais usando documentos falsos são algumas das possibilidades.

Os criminosos também podem usar os dados para fazer cobranças falsas, por exemplo, se passando por bancos, financeiras, prestadoras de serviços e até mesmo o governo.

O que eu poderia ter feito para proteger minhas informações?

Com relação a este megavazamento, as pessoas atingidas não podiam fazer nada para evitá-lo, pois a responsabilidade de proteger os dados é de quem os recebe (empresas, governo, redes sociais etc).

Mas você pode diminuir os riscos tendo o cuidado de evitar informar dados pessoais a sites não confiáveis.

Em ações como esta, o internauta não tem o que fazer para se proteger.

 

Publicado por Techtudo

29 jan
Como a eleição na Câmara afeta a reforma tributária

O MINISTRO DA ECONOMIA, PAULO GUEDES

A eleição de um novo presidente na Câmara dos Deputados, em 1º de fevereiro, pode impactar a reforma tributária que vem sendo debatida no Congresso. A depender de quem vença a disputa interna entre os parlamentares — o candidato Arthur Lira (PP-AL), apoiado pelo governo Jair Bolsonaro, ou seu principal adversário, Baleia Rossi (MDB-SP) —, as mudanças na cobrança de taxas, contribuições e impostos no Brasil tendem a ser diferentes, segundo especialistas ouvidos pelo Nexo.

Há três projetos principais de reforma tributária em tramitação no Congresso. Um deles é de autoria do governo Bolsonaro. Outros dois são de autoria dos próprios parlamentares, um deles elaborado na Câmara e outro no Senado.

3 propostas
DO GOVERNO

O projeto de lei enviado pelo ministro Paulo Guedes à Câmara em julho de 2020 acaba com o PIS (Programa de Integração Social) e com o Cofins (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social) para criar a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), com alíquota de 12%. A ideia é enviar novas mudanças, numa espécie de reforma fatiada. Está nos planos de Guedes desonerar a folha salarial e criar uma nova CPMF para compensar a redução na arrecadação dos encargos trabalhistas.

DA CÂMARA

Na Câmara, tramita desde 2019 a PEC 45, de autoria do Baleia Rossi, que prevê a união de cinco tributos (IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS) num único imposto, o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços). Por se tratar de uma PEC (Porposta de Emenda à Constituição), sua aprovação é mais complicada do que a proposta do governo. A PEC 45 é defendida pelo atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que apoia a eleição de Rossi.

NO SENADO

No Senado, tramita desde 2019 a PEC 110, que também prevê a criação do IBS, mas com a extinção de nove impostos (IPI, IOF, PIS/Pasesp, Cofins, Salário-Educação, Cide-Combustíveis, ICMS e ISS) e a criação de um Imposto Seletivo sobre, por exemplo, cigarros.

As declarações públicas sobre as propostas
No fim de 2020, Maia disse que a Câmara teria 320 votos (de um mínimo de 308) para aprovar a PEC 45, num aceno de que a reforma tributária teria mais chance de passar com a eleição do seu candidato, Baleia Rossi, na disputa entre deputados. “No modelo brasileiro, o presidente da Câmara não é apenas quem pauta as matérias. Tem papel decisivo na formação da maioria e exerce influência sobre a pauta”, disse Maia ao Jornal da Câmara.

O governo Bolsonaro, por sua vez, aposta que uma vitória de Arthur Lira pode impulsionar o projeto do Ministério da Economia. “Se não é possível caminhar assim [com a aprovação do projeto de lei do governo], eu prefiro esperar. Essa [PEC 45] não é a nossa reforma tributária, a gente espera mais um pouco”, disse Guedes no fim de 2020. Para ele, a PEC 45, já analisada pela comissão mista do Congresso, é incompatível com a proposta do governo, que pretende no futuro apresentar mais um projeto com a desoneração da folha de pagamentos mediante a criação de um tributo sobre transações digitais.

Até o momento, nenhum dos textos das principais reformas tributárias no Congresso passaram pelos plenários da Câmara ou do Senado — os senadores também vão escolher o presidente da Casa em 1º de fevereiro.

A disputa entre os entes federativos
Para Bruno Carazza, professor de Direito e Economia IBMEC e Fundação Dom Cabral, a reforma tributária, seja qual for o modelo adotado, sempre traz disputas envolvendo estados e municípios, o que dificulta sua aprovação. “Tem que ser uma coisa muito cuidadosa porque, quando a gente fala em mudança de impostos, sempre terão ganhadores e perdedores — os perdedores conseguem pressionar o Congresso para que a reforma não avance”, disse ao Nexo.

“No caso da reforma tributária que estamos discutindo atualmente, a PEC 45, de Baleia Rossi, que tem uma regra de transição mais longa [para as mudanças] e cria um fundo em que estados e municípios perdedores serão recompensados ao longo do tempo, a vitória dele aumenta a chance de uma reforma avançar”, afirmou Carazza.

“O Planalto aposta em Arthur Lira porque Guedes tem uma outra visão a respeito da reforma tributária. Então, é provável que, no caso de uma vitória de Lira, o projeto que está na Câmara seja preterido e volte a discussão pela volta da CPMF”, disse o professor.

A disputa entre indústria e serviços
No âmbito dos setores econômicos, Carazza observou que existe conflito de interesses entre as áreas de serviço e indústria. “Essa questão entre Lira e Baleia esconde uma outra disputa, que a meu ver é mais pesada: a disputa entre os setores da economia”, afirmou.

Segundo Carazza, a PEC 45 nivela a alíquota dos impostos para todos os setores. “Hoje, na economia brasileira, a indústria paga mais impostos do que o setor de serviços. Se nivelar, como a proposta de Baleia Rossi prevê, a carga tributária da indústria vai cair e a de serviços vai subir, então o setor de serviços está se mobilizando no Congresso para barrar a agenda do Baleia Rossi”, afirmou.

“O setor de serviços apoia a proposta de Guedes, que desonera a folha de pagamentos”, disse Carazza. “Se Baleia Rossi vencer, ele vai favorecer o projeto dele, mas temos que ver como será essa resistência dos deputados influenciados pelo setor de serviços”, completou.

A nova CPMF como entrave
A proposta de Guedes de criar uma nova CPMF sobre transações financeiras digitais sofre forte resistência no Congresso. E mesmo o presidente Jair Bolsonaro já prometeu publicamente que não ressuscitaria o tributo extinto em 2007 pelos parlamentares, durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva.

Para Breno Vasconcelos, professor de direito tributário do Insper, as experiências de imposto sobre transações financeiras mostram que, a longo prazo, o tributo não resolve a questão da arrecadação.

“A CPMF é um tributo que, num primeiro momento, tem um potencial de arrecadação muito grande — é fácil de ser criado e cobrado, então tem essa vantagem de gerar receitas rapidamente. Agora, com o tempo, as empresas e as famílias aprendem a evitá-lo. Então, ele distorce o sistema e acaba reincidindo sobre quem tem menos”, afirmou o professor do Insper.

“A experiência internacional mostra que todos os países que adotaram tributação sobre operações financeiras nos anos 1990 voltaram pra trás, por gerar muitos efeitos negativos na economia”, completou Vasconcelos..

A urgência da reforma tributária
O Brasil é um país com sistema tributário extremamente complexo, com muitas legislações cruzadas sobre o tema, federais, estaduais e municipais. É país em que os impostos também são regressivos. Isso quer dizer que seu pagamento pesa mais para a população mais pobre do que para a população mais rica.

Vasconcelos disse que a aprovação de uma reforma tributária no Brasil é urgente, independente do modelo que seja adotado. “Não sei se vai ter condições do ponto de vista político para levar adiante a reforma, mas sei que existe um clima no Brasil de consenso sobre a necessidade de promovermos uma reforma”, afirmou.

Publicado por: NEXO Jornal

07 jan
Situações da prática do crime de evasão de divisas por meio de criptoativos

A transferência de criptoativos e sua conversão em moeda estrangeira para depósito no exterior

Foto: Pixabay

Os criptoativos são um fenômeno surgido a partir do lançamento do bitcoin em 2008, no contexto da grave crise financeira mundial que se iniciou com a quebra de grandes bancos nos Estados Unidos, deixando claro que o sistema bancário não era digno de toda a confiança que julgava ostentar. Assim, o bitcoin foi a primeira tecnologia exitosa em alcançar a transferência de valores diretamente entre as partes, sem a necessidade da intervenção de um terceiro que as legitimasse.

Antes do bitcoin, as tentativas de desenvolvimento de tecnologias de transferência de valores diretamente entre as partes fracassaram em razão da falta de solução do problema de se assegurar a autenticidade das operações sem a presença desse terceiro, o que foi resolvido a partir da engenhosidade conhecida como blockchain e nada mais é do que o uso combinado de (1) criptografia para conferir a autenticidade dos usuários e (2) do incentivo da mineração, que é a contraprestação paga aos pontos do sistema que mantém uma cópia integral do livro-caixa com a integralidade das transações (chamado de bitcoin core).

Dessa forma, quando um usuário dá a ordem de transferência de determinado valor de bitcoin para outro usuário, indicando o número da carteira do destinatário (wallet)[1], esse comando lança um desafio matemático cuja solução tem quatro principais consequências: (1) a efetiva transferência do valor da carteira do remetente à do destinatário; (2) o acréscimo de um novo um bloco (block) ao livro-caixa (bitcoin core), cujas cópias estão armazenadas nos múltiplos computadores que sustentam a rede desse sistema distribuído; (3) o titular do computador que resolveu o desafio matemático é retribuído com valores em bitcoin, o que é conhecido como mineração; (4) todos os outros computadores que armazenam o livro-caixa (bitcoin core) acrescem à sua respectiva cópia essa nova operação, esse novo bloco (block).

Pelo que cada uma das transações que vão sendo solucionadas pelos computadores representam um novo bloco (block) nessa corrente (chain), que é a sequência integral das transações realizadas no sistema bitcoin. Por esse motivo a denominação blockchain.

Feita essa sucinta análise do funcionamento do bitcoin, o pioneiro dos criptoativos, a partir do qual foram desenvolvidas as outras tecnologias, passemos a discutir a prática do crime de evasão de divisas, na forma do art. 22, caput e parágrafo único da Lei nº 7.492/86:

Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País:

Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.

Segundo lição de Leandro Bastos Nunes[2], o bem jurídico tutelado pela referida norma penal é a preservação das reservas cambiais. Dessa forma, se busca a manutenção de valores no plano interno, de modo a prestigiar a economia nacional, já que um dos grandes riscos à economia de qualquer país é a fuga de capitais para o exterior, o que demonstra a falta de confiança na economia local, sendo um presságio de grave crise econômica.

Do ponto de vista da ciência econômica, uma moeda se presta a servir como: (1) reserva de valor, (2) meio de pagamento e (3) unidade de conta. No entanto, nenhum desses atributos são plenamente cumpridos pelos criptoativos, o que impede seu reconhecimento como tal[3]. Além disso, criptoativos não são emitidos pelos Estados, de modo que não são moeda também no plano jurídico. Dessa sorte, o Bacen editou o Comunicado nº 31.379, de novembro de 2017, no qual informa que o conceito de moeda eletrônica, prevista na Lei nº 12.685/2013, não se confunde com moeda virtual (criptoativo).

No entanto, tal como proposto desde o nascedouro do bitcoin, os criptoativos servem como instrumentos de transferência de valores, com alcance global, podendo ser rápida e facilmente convertidos em moeda soberana por meio das exchanges.

Exchanges são instituições que atuam como corretoras virtuais, permitindo a conversão de moeda soberana em criptoativos e vice-versa. Seu funcionamento é muito parecido com o das instituições que prestam serviços de compra e venda de renda variável no mercado financeiro. A pessoa interessada em operar criptoativos registra uma conta pessoal na exchange, a partir do que lhe será possível realizar transferências de moeda soberana, mediante instrumento bancário ou cartão de crédito, por exemplo. Uma vez depositados os valores em moeda soberana em sua conta pessoal, é possível ao usuário comprar e vender os criptoativos oferecidos pela instituição. As exchanges oferecem basicamente dois serviços, compra e venda de criptoativos e a custódia desses valores em carteiras (wallets) a ela vinculadas.

Assim, por exemplo, se utilizando de uma exchange domiciliada no Brasil, um usuário promove a conversão de R$ 2 milhões em bitcoin. Em momento posterior, por meio de uma outra exchange, domiciliada no exterior, esse mesmo usuário faz a operação inversa, e vende seus bitcoins, recebendo em moeda soberana local, ilustrativamente, euro. Na sequência, ele transfere seus euros para uma conta que possui em uma instituição bancária no estrangeiro, sem comunicar as autoridades brasileiras.

Todos os atos descritos podem ser praticados em poucos minutos, pela mesma pessoa, de qualquer ponto do planeta com conexão à internet. No caso narrado, houve a conversão de moeda nacional em estrangeira, com sua remessa para fora do país. É inegável que foi realizada operação de câmbio não autorizada, configurando o crime do caput do art. 22 da Lei nº 7.492/86, conforme já reconhecido pelo STJ (CC 161.123, Rel. Sebastião Reis Junior, 3ª Seção, DJE 05.12.2018).

No entanto, situação diferente é a do parágrafo único do art. 22 da Lei nº 7.492/86, onde não há operação de câmbio para a remessa de moeda para o exterior.

Leandro Bastos Nunes, no trabalho anteriormente mencionado, acertadamente, traça paralelos da utilização do bitcoin como meio para a prática da evasão de divisas, com os casos do emprego de “dólar-cabo” para o mesmo fim ilícito, cuja tipicidade penal foi reconhecida pelo STF (Ação Penal 470):

(…) a materialização do delito de evasão de divisas prescinde da saída física de moeda do território nacional. Por conseguinte, mesmo aceitando-se a alegação de que os depósitos em conta no exterior teriam sido feitos mediante as chamadas operações “dólar-cabo”, aquele que efetua pagamento em reais no Brasil, com o objetivo de disponibilizar, através do outro que recebeu tal pagamento, o respectivo montante em moeda estrangeira no exterior, também incorre no ilícito de evasão de divisas. Caracterização do crime previsto no art. 22, parágrafo único, primeira parte, da Lei 7.492/1986, que tipifica a conduta daquele que, “a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior” – destacamos. (STF, Tribunal Pleno, Rel. Joaquim Barbosa, j. 17/12/2002)

Dessa forma, retomando o exemplo trazido anteriormente neste trabalho, caso o usuário, após comprar bitcoin com reais e os transferir para uma exchange estrangeira, se utilize dos serviços desta instituição para conversão do criptoativo em moeda estrangeira, ainda que, posteriormente, não venha a movimentar esses valores em moeda estrangeira para uma instituição bancária no exterior, v.g., caso mantenha os valores em euro na conta vinculada à exchange estrangeira, em não tendo sido comunicada essa operação à Receita Federal (o que se exige, ainda, por força do art. 6º, II, a, da Instrução Normativa nº 1.888/2019 da Receita Federal), há o crime de evasão de divisas da parte final do parágrafo único, a depender do valor mantido em depósito, na medida em que houve a disponibilização, no estrangeiro (na exchange estrangeira), de valor em moeda estrangeira.

No entanto, caso não tenha ocorrido a conversão dos valores de criptoativo em moeda estrangeira, ainda que mantido o depósito dos criptoativos na exchange estrangeira, em razão de os criptoativos não serem moeda ou divisa, a conduta é atípica.

Veja-se que nesta situação estarão depositados na carteira (wallet), mantida junto à exchange estrangeira, valores em criptoativo e não em moeda estrangeira.

Por fim, pontuamos que discordamos da expressão “bitcoin-cabo” cunhada pelo mencionado autor, por se mostrar tecnicamente imprópria, já que a operação de “dólar-cabo” exige a presença dos doleiros como peças centrais que registram e compensam as operações de transferência de valores, ainda que não haja a movimentação física do dinheiro. Por sua vez, o bitcoin, como tratado anteriormente, permite que as movimentações sejam feitas diretamente entre as partes, dispensando a intervenção de qualquer terceiro. Desse modo, tal como trazido no exemplo, uma única pessoa, usando os serviços de uma exchange no exterior, pode praticar o crime em análise.

Em conclusão, a transferência de criptoativos e sua conversão em moeda estrangeira, seguida de movimentação desses valores para depósito em banco no exterior, sem comunicação às autoridades competentes, a depender do valor, configura o crime previsto no caput do art. 22 da Lei nº 7.492/86, já que nesse caso os criptoativos são utilizados como meios de transferência de valores, servindo para a prática de operação cambial irregular com o fim de promover evasão de divisas do país. Entretanto, para a tipificação da figura assemelhada, prevista na parte final do parágrafo único do referido excerto normativo, é preciso verificar se houve ou não a conversão do criptoativo em moeda estrangeira pela exchange no exterior, ainda que não tenha havido a movimentação desses valores para o sistema bancário estrangeiro. Em caso positivo, se aperfeiçoou a figura delituosa; em caso negativo, o fato é atípico.


Publicado por JOTA

21 dez
The Boys e o fomento do Direito Penal do Inimigo através da opinião pública

 

O seriado de televisão The Boys, derivado da série de quadrinhos com o mesmo nome e distribuído pelo serviço de streaming Prime Video, angariou imediato sucesso ao redor do mundo, desde a estreia da primeira temporada no ano de 2019. Grande parte deste sucesso se deve ao fato de que a trama retrata brilhantemente a forma como o poder corrompe aqueles que o possuem.

ZAFFARONI aborda o tema do Direito penal do inimigo de modo esclarecedor:

Na teoria política, o tratamento diferenciado de seres humanos privados do caráter de pessoas (inimigos da sociedade) é próprio do Estado absoluto, que, por sua essência, não admite gradações e, portanto, torna-se incompatível com a teoria política do Estado de direito. Com isso, introduz-se uma contradição permanente entre a doutrina jurídico-penal que admite e legitima o conceito de inimigo e os princípios constitucionais internacionais do Estado de direito, ou seja, com a teoria política deste último (ZAFFARONI, 2007, p.11)

No enredo, Vought Internacional é uma empresa multinacional que, entre outras coisas, gerencia a “carreira” e a imagem de super-heróis (Os Sete), que são celebridades absolutas. A monetização existente nesse nicho também é um fator que a série desenvolve otimamente – a valer, os supes (ou supers, na versão traduzida) levam vidas de estrelas e seus poderes lhe logram ocupações profissionais extremamente bem-sucedidas no mundo da mídia, nada diferente dos grandes artistas e modelos de prestígio.

Ocorre que a corporação opera muito além do marketing dos supes, pois de fato é responsável pela criação dos mesmos em laboratórios secretos. Sem adentrar demasiadamente no mérito dos crimes e falta de escrúpulos da empresa ao praticar estas condutas, importa constatar o óbvio: eles têm muito a ganhar com a tomada de poder dos super-heróis e à incorporação dos mesmos ao exército e ao projeto de segurança nacional, o que lhes garante poder irrestrito para agir da forma como quiserem com impunidade.

 Com efeito, é retratado que a Vought tem nas suas origens laços com o regime nazista e a busca da criação de super-soldados – o que deixa claro que desde o início da corporação já haviam planos de dominação mundial através de um exército de pessoas com poderes especiais.

Nesta senda, a segunda temporada da série encena o manejo da opinião das massas para atender a determinados interesses. Isso é feito com a criação da figura do inimigo – qual seja, os “super-terroristas” (estrangeiros com super-poderes). A partir dessa delimitação, segregação e criação da figura dos imigrantes como inimigos, o discurso da corporação em favor dos supes busca fazer que se acredite que os mesmos são a única salvação contra este mal que ameaça a sociedade.

Mister lembrar também que a série retrata os super-heróis de uma forma realista, pois o poder os corrompe e a prática de todos os tipos de crimes, tanto para ganho próprio e/ou satisfazer seus impulsos sádicos quanto para manter limpa a imagem da empresa.

Em semelhante análise, no mês de abril de 2020 escrevemos um artigo tratando do tema Direito penal do inimigo e traçando um paralelo com a série La Casa de Papel, disponível AQUI. No referido texto, aborda-se a maneira com a qual o Direito penal do inimigo se apresenta de modo sobremaneira diferente do que se pretende no presente trabalho.

Para ilustrar o argumento oferecido, cabe destacar uma cena onde Homelander (Capitão Pátria) faz um discurso digno de um grande populista. Em sua fala, traz noções corriqueiras nesta espécie de retórica, utilizando-se de frases como “uma nação abaixo de Deus” e incitando lembranças de um passado utópico onde tudo era melhor (mesmo que este passado só exista em um imaginário falseado).

O bombardeio ideológico através dos mais variados meios de comunicação chega ao ponto de fazer com que os cidadãos fiquem em um constante estado de medo e estresse, inclusive chegando-se ao ponto onde ocorrem assassinatos de inocentes a partir da impressão subjetiva da mera possibilidade de que o outro seja um dos supostos inimigos.

Destarte, a proposta de JAKOBS no sentido de que é possível punir, em casos determinados (o inimigo, delinquente, indesejável) antes mesmo dos atos preparatórios em razão de uma suposta periculosidade é exatamente algo que pode causar cenários de caos conforme acima mencionado:

Portanto, o Direito Penal conhece dois polos ou tendências em suas regulações. Por um lado, o tratamento com o cidadão, esperando-se até que se exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade (JAKOBS; MELIÁ, 2012, p. 17).

O discurso da propagação do terror sempre foi a mais eficaz ferramenta de propaganda para a manipulação das massas. A valer, a partir do momento em que a sociedade começa a apoiar a ideologia proposta, buscando finalmente o extermínio dos indesejáveis, inicia-se uma era de carta branca para que o Estado de polícia comece a operar sem empecilhos.

Dentro deste contexto, cada cidadão da sociedade vire um inimigo em potencial, sem qualquer critério objetivo e sempre atendendo aos interesses do poder estabelecido. Sequestros, tortura e execuções arbitrárias ocorrem de maneira descontrolada. Os mais variados tipos de crime são cometidos pelos sedizentes super-heróis, que na verdade são verdadeiros vilões totalmente corrompidos pelos seus poderes.

A partir da tática da propagação do terror e da promessa de salvação, delimitando um inimigo imaginário para manter a população em forma de rebanho, sempre com medo e agindo de maneira acrítica, inicia-se o processo da tolerância à diferenciação dos seres humanos entre pessoas e não-pessoas, entre cidadãos e ameaças a serem exterminadas.

Dando espaço para o fomento do preconceito contra o inimigo da vez – subjetiva e arbitrariamente escolhido para atender a interesses pessoais – e abrindo mão paulatinamente das liberdades individuais, cada cidadão não se dá conta de que não há absolutamente nada que impeça que, a depender da vontade subjetiva do poder estabelecido, qualquer um pode ser taxado de inimigo e ter seus direitos extirpados.


REFERÊNCIAS

JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Organização e Tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 6.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2.ed. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

Publicado por: Canal Ciências Criminais

15 dez
STF decide que amante não tem direito de dividir pensão com viúva

Prevaleceu entendimento de que o Brasil é um país monogâmico e que não se pode reconhecer duas uniões simultâneas


Foto: Dorivan Marinho/SCO/STF

O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu nesta semana que o Brasil não admite a existência de duas uniões estáveis ao mesmo tempo, o que impede o reconhecimento de direitos de amantes em discussões judiciais.

Por um placar apertado de 6 a 5, a corte reafirmou que o país é monogâmico e rejeitou recurso em que se discutia a divisão de pensão por morte de uma pessoa que, antes de morrer, mantinha uma união estável e uma relação homoafetiva ao mesmo tempo.

Prevaleceu o voto do relator, Alexandre de Moraes, que foi acompanhado pelos ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Kassio Nunes Marques e Luiz Fux. Divergiram os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Marco Aurélio. O julgamento ocorreu no plenário virtual.

A decisão foi tomada em processo com repercussão geral reconhecida, ou seja, vale para outros casos similares em curso no Judiciário. Os ministros aprovaram a seguinte tese a ser aplicada pelas demais instâncias da Justiça:

“A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, §1º do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro”.
O processo corre sob sigilo e não tem maiores informações disponíveis nos autos.

No relatório, Moraes afirmou que a ação foi movida pelo amante, que teria mantido “convivência comum” de 1990 até 2002, quando a pessoa morreu e gerou o direito do cônjuge à pensão por morte.

O juiz de primeira instância reconheceu o direito do amante, mas o Tribunal de Justiça do Sergipe reformou a decisão.

Moraes ressaltou que não houve discriminação por parte da corte estadual. Segundo o ministro, o tribunal apenas afirmou que não pode ser reconhecido a união “em virtude da preexistência de outra união estável havida entre o de cujus e uma terceira pessoa em período coincidente”.

“A questão constitucional a ser decidida está restrita à possibilidade de reconhecimento, pelo Estado, da coexistência de duas uniões estáveis paralelas e o consequente rateio da pensão por morte entre os companheiros sobreviventes, independentemente de serem hétero ou homoafetivas”, resumiu Moraes.

O ministro sustentou que o fato de a relação ter durado muito tempo não deve ser levada em consideração e disse que o STF tem jurisprudência consolidada nesse sentido.

“Apesar da longevidade dos relacionamentos extramatrimoniais, a corte considerou que o ordenamento brasileiro veda o reconhecimento estatal de uma união estável concorrentemente com um casamento”, argumentou.

O ministro afirmou que apesar dos “avanços na dinâmica e na forma do tratamento dispensado aos mais matizados núcleos familiares”, ainda “subsiste no ordenamento jurídico constitucional os ideais monogâmicos”.

Moraes citou que até o Código Civil prevê o dever de fidelidade dos cônjuges.

“Por todo o exposto, concluo que a existência de uma declaração judicial de existência de união estável é, por si só, óbice ao reconhecimento de uma outra união paralelamente estabelecida por um dos companheiros durante o mesmo período”, disse.

Primeiro a divergir, Edson Fachin destacou que nesses casos a Justiça deve observar se houve “boa-fé objetiva”. O ministro citou a mesma lei que Moraes para embasar sua posição
“Aliás, esta é a condição até mesmo para os efeitos do casamento nulo ou anulável, nos termos do Código Civil: Artigo 1.561 – Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos até o dia da sentença anulatória”, descreveu.

Segundo o magistrado, as relações jurídicas encerraram com a morte da pessoa, mas os efeitos de boa-fé devem ser preservados, permitindo o rateio da pensão.

“Desse modo, uma vez não comprovado que ambos os companheiros concomitantes do segurado instituidor, na hipótese dos autos, estavam de má-fé, ou seja, ignoravam a concomitância das relações de união estável por ele travadas, deve ser reconhecida a proteção jurídica para os efeitos previdenciários decorrentes”, justificou.

A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, publicou um vídeo nas redes sociais para “comemorar” a decisão da corte. “As viúvas ganharam por 6 a 5, quero cumprimentar o STF”, disse.

Ao lado dela na gravação, a secretária nacional da Família, Angela Gandra, também exaltou o entendimento firmado pelo Supremo.

“Seria um absurdo que uma viúva tivesse que dividir a sua pensão sem confirmação de união estável, com base em uma boa-fé que não existia. Nós íamos abrir uma porta para a injustiça e para o enfraquecimento de vínculos familiares tremendos. Graças a Deus houve essa sensatez do STF. Parabéns, não podemos julgar além da lei, além das nossa Constituição”, afirmou.

Fonte: Folhapress

09 dez
Opinião: Discurso e Política

Por Charles Beserra, Acadêmico de Direito do iCEV

No seu ensaio “a condição humana”, Hannah Arendt remonta aos primórdios da cultura democrática grega para entender os elementos constitutivos do fazer político. No ensaio, percebe-se certa crítica ao gap existente, na sua visão, entre a tradição e a modernidade em filosofia política.

No entanto, o seu olhar se fixa na experiência da polis grega (sobretudo em Atenas), onde etimologicamente foi cunhada a democracia como governo do povo e para o povo, para de lá extrair importantes lições sobre a essência da compreensão do homem como um animal político.

Na obra ela aborda dois pilares da política grega: a ação e o discurso. Pontua ela, que, para os gregos, “o discurso e a ação eram tidos como coevos ou iguais, da mesma categoria e da mesma espécie; e isso originalmente significava não apenas que a maioria das ações políticas, na medida em que permanecem fora da esfera da violência, são realizadas por meio de palavras, mas também, mais fundamentalmente, que o ato de encontrar as palavras certas no momento certo, independentemente da informação ou comunicação que transmitem, constitui uma ação”.

Assim, o discurso, ao lado da ação (práxis), ocupava um lugar central na polis grega. Todos os cidadãos acorriam à ágora, espaço onde eram decididas as questões públicas, para discorrerem entre sim e para acompanhar cada discurso. Os grandes discursos, os grandes oradores eram naturalmente celebrados e admirados.

Entre eles ressalta a figura de Demostenes, eminente orador grego. Essa proeminência do discurso no mundo grego reflete a própria cosmovisão grega, reflete o espirito de um povo.

O povo que, iniciando pela filosofia, elevou a razão ao status de importância coletiva. A palavra grega “logos” é eloquente para expressar o modo de pensar grego. Carregada de significados, a palavra passou a designar uma série de conceitos que vai desde “fala”, “discurso”, “raciocínio lógico”, “razão”, entre outros. Cotejando todas as acepções da palavra, para dela extrair uma noção moderna, poder-se-ia afirmar que ela é uma expressão da racionalidade em todas as suas facetas, inclusive no discurso.

A capacidade de articular ideias, através de palavras e frases, com auxilio entonação da voz e da linguagem corporal, requer certo grau de inteligência (que não coincide aqui com educação formal), utilizada na política, sobretudo, para influenciar pessoas. Nesses termos, o orador é uma espécie de artesão da palavra. Talvez daí decorra o velho preconceito em relação àqueles que almejam a vida pública e padeçam de dificuldades na articulação de ideias nos seus discursos.

Muitos enxergam nessa dificuldade um pecado capital para o desempenho do encargo público. O âmago desse preconceito latente, talvez fundado na tradição política, subjaza na ideia de que aquele que está perdido na sua fala e no seu discurso, não poderia conduzir a coisa pública, pois se não pode realizar com destreza algo mais simples como falar de modo compreensível, claro e inteligível, como poderia ser apto para toda complexidade da administração pública? O fundamento de tais questionamentos é o uso da razão humana em todas as suas potencialidades.

Outra questão importante relativa ao discurso na política: o homem público é uma espécie de profeta, que angaria apoio político por meio da persuasão. Não se pode esquecer o fato de que o líder nazista antes de tomar as armas, empunhou microfones. O profeta precisa que sua mensagem seja compreendida. Linguagem e discurso devem ser os mais ortodoxos possíveis. Um político sempre vende algo; geralmente promessas. Mas tudo isso é viável por meio do discurso (ou das armas, é claro!).

Dentro do âmbito democrático, antes de fazer, o político precisa falar. Com essas afirmações estar-se aqui a mitigar o pensamento maquiavélico que profetas armados são, ironicamente, os mais eloquentes e que os que se fazem melhor entender. Contudo, mesmo os profetas armados precisam da adesão inicial realizada por meio do discurso. Para se convencer as massas pelas armas, é preciso antes convencê-las pelo discurso. É o que se percebe nas revoluções russas e cubanas. Tudo começa no âmbito dos ideais, de novos mundos que são profetizados e que vão ganhando adesão.

Diante do que foi exposto, na maior parte das vezes, a análise da viabilidade política de certo candidato deve perpassar, enfática e inicialmente, em seu discurso, já que nem sempre é possível perceber a eloquência de suas ações nas coisas privadas, de onde ele emerge. A ressalva à “maior parte das vezes” é utilizada prudentemente aqui porque a vida comporta uma série de contingências que não se adequam à regra geral. Por exemplo, no fim do regime militar é possível que qualquer civil, independente do discurso, fosse preferível à manutenção do poder nas mãos dos mandatários militares. Não obstante, o discurso continua sendo, embora considerando a ruptura do fio da tradição política e histórica, fundamental, embora, vez ou outra, ele não seja mais que meras palavras vazias.

03 dez
Entenda o que muda com a Lei Geral de Proteção de Dados

Propostas sobre proteção de dados pessoais são debatidas no Congresso

Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) é uma legislação que tem o objetivo de proteger a liberdade e a privacidade de consumidores e cidadãos. Criada em 2018 e prevista para entrar em vigor em maio de 2021, ela demanda que empresas e órgãos públicos mudem a forma de coletar, armazenar e usar os dados das pessoas. Ou seja, terá impactos significativo nas áreas jurídica, administrativa e de segurança da informação das companhias.

Na corrida por implementar todos os novos processos, muitas empresas e profissionais ainda estão com dúvidas sobre a LGDP. Veja, a seguir, cinco perguntas e respostas e veja como se preparar para as mudanças que vêm aí.

No geral foram cinco principais mudanças:

1 –  O cidadão deve consentir o uso dos seus dados, pode pedir cópia deles e solicitar que sejam eliminados ou transferidos
2  – Ao coletar dados, as empresas devem informar a finalidade disso.
3  – As instituições devem adotar medidas de segurança das informações e notificar o titular em caso de incidente de segurança.
4 –  A lei instituiu a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão responsável por implementar e fiscalizar as normas previstas.
5 –  Há sanções para o caso de violação das regras, como advertência, multa e bloqueio ou eliminação dos dados.

1. O que é a LGPD?

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais é uma norma federal aprovada em 2018. Ela estabelece regras para o uso, coleta, armazenamento e compartilhamento de dados dos usuários por empresas públicas e privadas. O principal objetivo é garantir mais segurança, privacidade e transparência no uso de informações pessoais. Com a nova legislação, o usuário terá o direito de consultar gratuitamente quais dos seus dados as empresas têm, como armazenam e até pedir a retirada deles do sistema.

Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais entra em vigor em maio de 2021 — Foto: Reprodução/Governo Federal

Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais entra em vigor em maio de 2021 — Foto: Reprodução/Governo Federal

Esses dados podem ser números de documentos como RG, CPF, PIS, endereço, ou aqueles considerados pela LGPD como mais “sensíveis” — por exemplo: origem racial ou étnica, filiação à organizações políticas ou religiosas, informações genéticas e de biometria ou de orientação sexual. Vale lembrar que essas características são coletadas de diversas maneiras hoje em dia. É o caso dos apps de celulares que pedem acesso às informações de usuários e os formulários preenchidos em sites de empresas para receber newsletters ou ofertas. Isso também acontece ao participar de promoções em redes sociais, e até ao preencher cupons de promoção no supermercado.

2. Porque a LGPD foi criada?

O aumento dos casos de vazamento de dados nos últimos anos fez com que governos, empresas e sociedade se preocupassem em criar mecanismos para evitar a invasão de privacidade. Outro fator relevante é a perda financeira causada por ataques cibernéticos. No Brasil, a perda foi de R$ 80 bilhões de reais, em 2019, como informa o levantamento mais recente da União Internacional de Telecomunicações (ITU, na sigla em inglês), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU).

A LGPD foi inspirada no Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (GDPR, na sigla em inglês), criado em 2018, que trata da segurança de informação dos cidadãos europeus. No Brasil, até o momento, não havia legislação específica sobre o assunto, apenas disposições gerais no Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, na Lei de Acesso à informação e no Marco Civil da Internet. Por isso, a expectativa é que a nova lei resolva os impasses sobre o uso e a proteção de dados dos cidadãos e consumidores brasileiros.

3. O que muda para as empresas?

Todas as empresas, sejam PMEs (Pequenas e Médias Empresas) ou de grande porte, terão que atender às exigências da LGPD. Um das mudanças mais importantes é que a nova lei prevê o consentimento expresso dos clientes para o uso das informações. Isso significa que as companhias precisarão deixar claro para quê as informações serão usadas. Normalmente, os formulários nas páginas de Internet e avisos eletrônicos de empresas públicas e privadas perguntam sobre o consentimento dos usuários. A diferença neste quesito é que agora os termos deverão ser mais transparentes.

Por exemplo, se um indivíduo contrata um serviço de qualquer natureza e precisa fornecer informações pessoais para obtê-lo, será obrigatório justificar a necessidade disso. Fica vetado o uso dos dados para outras finalidades que não sejam as que foram acordadas e o armazenamento de informações das quais as empresas não possa comprovar a necessidade. A LGPD garante aos clientes o direito de responsabilizar as empresas caso seus dados sejam roubados por terceiros. Quem descumprir a lei pode ser multado em R$ 50 milhões por infração ou em até 2% do faturamento.

Informações armazenadas sem o consentimento do usuário podem gerar punições para as empresas — Foto: Divulgação/Dell

Informações armazenadas sem o consentimento do usuário podem gerar punições para as empresas — Foto: Divulgação/Dell

Vale ressaltar que as novas medidas englobam documentos em formato digital e também no papel. A fiscalização das normas será feira pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), um órgão federal criado em 2019. É importante destacar também que a LGPD não se aplica em alguns casos, como, por exemplo, empresas jornalísticas e artísticas, de segurança pública, do Estado e de investigação e repressão de infrações penais.

4. O que as empresas devem fazer para se adaptar?

A nova LGPD estava prevista para entrar em vigor no mês de agosto deste ano. Contudo, foi adiada para maio de 2021, após o Governo editar a Medida Provisória (MP) nº 959 que trata da operacionalização do pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, e adiamento da Lei nº 13.709, que estipula a LGPD. Dessa forma, as instituições terão até o ano que vem para se adaptar. Uma pesquisa realizada pela consultoria de riscos ICTS Protiviti, no final de 2019, apontou que 84% das empresas não estão preparadas para a implementação das novas regras.

Para se adequar à LGPD, será necessário mudar a cultura no que diz respeito à gestão dos arquivos, contratação de especialistas e investimento em segurança da informação. Entre as exigências da LGPD está a criação do cargo de DPO (sigla em inglês para Data Protection Officer), um profissional que deve ficar inteiramente responsável pela segurança dos dados (de funcionários, indivíduos de fora da organização ou ambos). A lei não especifica a formação, porém deve ser alguém com conhecimentos em leis e na área de TI. Uma das atribuições desse profissional será prestar contas à ANPD com o envio de relatórios sobre os impactos da proteção dos dados.

Lei exige criação do cargo Data Protection Officer, profissional responsável pela segurança dos dados — Foto: Divulgação/Unsplash (Amy Hirschi)

Lei exige criação do cargo Data Protection Officer, profissional responsável pela segurança dos dados — Foto: Divulgação/Unsplash (Amy Hirschi)

É recomendável que a empresa faça um mapeamento e documentação dos dados que já possui e classifique essas informações. É importante, por exemplo, verificar se estão armazenados de maneira segura, se foram coletadas mediante consentimento e para qual finalidade. Além disso, aos funcionários que lidam com dados de pessoas e clientes devem assegurar o sigilo das informações seguindo boas práticas de segurança da informação.

5. A LGPD aumenta demanda por profissionais de TI?

Os profissionais de TI representam uma peça-chave no processo de adequação das empresas à LGPD porque são eles que, geralmente, já cuidam dos dados armazenados na nuvem ou em servidores das empresas. Também são os responsáveis por monitorar riscos de ataques virtuais e por tornar eficiente todas as operações de tecnologia. De acordo com a LGPD, obrigatoriamente, todos os dados terão de ser criptografados para que, em caso de vazamento, não possam ser lidos por terceiros.

Profissionais de TI serão cada vez mais necessários após implementação da LGPD — Foto: Divulgação/Unsplash (by Pakata Goh)

Profissionais de TI serão cada vez mais necessários após implementação da LGPD — Foto: Divulgação/Unsplash (by Pakata Goh)

Com a implantação da lei, a tendência é que haja maior investimento em soluções como VPN e dispositivos de firewall — ou outras opções de conexão e armazenamento seguro —, que já são utilizados por muitas empresas e que são administrados pela equipe de TI. Outra atribuição dessa área que será essencial para os gestores é o conhecimento em boas práticas de segurança e de processamento de dados confidenciais. Uma dica para quem está nesse mercado é buscar cursos de atualização e certificações.

Fonte: Techtudo

06 nov
A guerra do 5G e TikTok: EUA e China disputam dados, mercado e futuro digital

O sucesso global do app chinês TikTok colocou os EUA na posição em que a maioria dos países havia sido colocada por Facebook, Twitter, Instagram e Google: dados de milhões de seus cidadãos nas mãos de uma empresa estrangeira. Ao mesmo tempo, a adoção de equipamentos de 5G da chinesa Huawei é apontada pelos americanos como um risco à privacidade e segurança de países ocidentais. O novo episódio do podcast Big Data Venia discute o papel da tecnologia na disputa geopolítica entre os dois países. E como o Brasil (e cada usuário) pode ser afetado.

Assista no YouTube:

Enquanto a atuação das empresas chinesas no Ocidente desperta novos debates e pressão política, as concessões das empresas ocidentais para operarem na China continuam sendo uma premissa para entrar em um mercado cobiçado. Até que ponto essas concessões são apenas negócios?
As tensões ficaram mais evidentes com a ascensão da inovação chinesa. Enquanto era apenas um mercado interno crescente e a “fábrica do mundo”, produzindo a custo baixo produtos desenvolvidos nos EUA e Europa, a China era uma parceira conveniente para as grandes empresas ocidentais.
Quando começou a tomar a dianteira no desenvolvimento de tecnologia crítica, como o 5G, a disputa mudou de patamar. Trata-se agora de disputa de mercados e de posicionamento estratégico.
E, dos dois lados, a segurança nacional é o discurso comum de bloqueio à ações do outro. No Big Data Venia desta semana, os convidados discutem o jogo geopolítico e a posição do Brasil. Sendo mercado para os apps americanos e chineses e precisando definir sua tecnologia de 5G, qual o melhor caminho para o país? E com as evidências de uso inadequado dos dados dos usuários das grandes redes ocidentais, é preciso temer mais o TikTok?
Publicado por JOTA

26 out
Como elaborar um excelente manual de atendimento ao cliente na advocacia

Você já ouviu falar na utilização de manual de atendimento ao cliente na advocacia? Em resumo, é um documento que aborda os principais pontos de dúvida do relacionamento do cliente com o advogado ou escritório e que visa esclarecer, desde já, como esse relacionamento irá funcionar.

O que é o manual do cliente na advocacia?

Eu sei que o nome “manual do cliente” remete a algo burocrático, como um manual de instruções ou um manual de treinamento. Mas comece afastando essa ideia.

A ideia de utilizar um manual de atendimento ao cliente na advocacia vem de um procedimento de escritórios norte-americanos, chamado de “onboarding process”. Esse termo pode ser traduzido como procedimento de entrada, e a ideia é padronizar todos os passos iniciais do cliente no escritório para evitar erros.

O que chamamos aqui de manual do cliente é uma parte desse procedimento. É o conjunto de informações essenciais ao cliente para ter um bom relacionamento com o escritório. Isso inclui: horário de atendimento, tempo de resposta, prazo para distribuir o processo, prazo para entregar o parecer, próximos passos, etc.

Essas informações podem ser entregues em diferentes formas, tais como no corpo de um e-mail, em um arquivo anexo, um vídeo, uma mensagem de WhatsApp… As probabilidades são inúmeras.

Benefícios do manual do cliente na advocacia

O ponto de mais conflitos entre advogados e clientes é no relacionamento, não é verdade?

Quantas vezes já ouvimos clientes falarem que outros advogados não atendem o telefone ou não dão informações de andamento aos clientes? Por outro lado, quantos advogados ouvimos reclamando de clientes que ligam fora da hora ou que pedem informações diariamente?

Esses conflitos decorrem de diferença de expectativas: o cliente tem uma expectativa diferente daquela do advogado.

Ao utilizar um manual de atendimento ao cliente na advocacia você diminui imensamente esses conflitos. Afinal, o material terá as informações específicas, escolhidas entre as que mais geram conflitos entre advogados e seus clientes.

O que adicionar em um manual do cliente?

O Manual do Cliente deve conter as principais informações que seu cliente necessita no relacionamento com o escritório.

Alguns exemplos são:

  • Quais são as formas e horários de contato?
  • Qual o tempo médio para você retornar os contatos?
  • Em quanto tempo você vai dar entrada na petição inicial do cliente?
  • Em quanto tempo você vai entregar o contrato ou parecer solicitado?
  • Como o cliente é comunicado das movimentações processuais?
  • Como ocorre a entrega de documentos?

Você também pode acrescentar outras informações que sejam de interesse dos clientes, ou que costumam gerar mais dúvidas entre eles. A ideia é colocar em um só lugar, com um único esforço, as principais informações para consulta.

O Manual do Cliente deve ter a cara do seu escritório, mesmo se o escritório for só você. Ele deve ter o seu estilo de comunicação e se integrar com a sua proposta de comunicação, falando diretamente com as personas escolhidas pelo seu escritório.

É importante também testar a forma mais efetiva para se comunicar com o seu cliente. Eu, por exemplo, envio as informações no corpo do e-mail, e não em um anexo, por ter notado ser mais efetivo assim para a minha clientela.

Modelo de manual do cliente na advocacia

Neste tópico, compartilho o meu modelo do manual de atendimento ao cliente na advocacia.

E já deixo um ponto de atenção aqui: tenha cuidado ao utilizá-lo. Ele está na minha voz, com a minha identidade e forma de me comunicar com os clientes – que é bem informal, como você vai notar. Se essa não for a sua forma de comunicação, não se preocupe: adapte o texto à sua escrita!

Então, minha dica é para que você acesse o material e ajuste à sua comunicação. No modelo já estão destacados os principais pontos de a serem ajustados, mas vale revisar todo o texto e adaptar à sua linguagem.

É só clicar!

Conclusão

Como vimos, é importante ter um manual de atendimento ao cliente na advocacia para reduzir potenciais conflitos com clientes e equilibrar as expectativas das partes.

No entanto, o Manual do Cliente não precisa ser uma coisa burocrática e chata, e muito menos um passo que crie uma distância entre o escritório e o cliente. Pelo contrário, ele pode ser utilizado para aproximar ainda mais a relação entre o cliente e o advogado.

Teste algumas formas e textos e veja qual se aplica mais ao seu caso. Se precisar adicionar ou cortar alguma parte, vá em frente! O Manual do Cliente deve ser uma representação fiel do seu escritório e da sua filosofia de comunicação com o cliente.

Publicado por Aurum 

19 out
A inovação como princípio da Administração Pública na reforma administrativa

Dentre as várias mudanças trazidas pela Reforma Administrativa, apresentada pelo Governo Federal por meio da Proposta de Emenda à Constituição n. 32/2020, destacam-se as alterações realizadas no texto do art. 37 da Constituição Federal, notadamente, a inclusão de novos princípios constitucionais da Administração Pública: imparcialidade, transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança pública e subsidiariedade.

Da nova geração de princípios, entende-se que boa parte pode ser verificada como mera decorrência ou extensão dos princípios pretéritos – e.g. a imparcialidade como decorrência da impessoalidade, a transparência como decorrência da publicidade, a responsabilidade como decorrência da moralidade, a coordenação como decorrência da eficiência.

A mesma lógica derivativa, todavia, não é aplicável a todos os novos princípios, como é o caso da inovação. Para se ter melhor entendimento, é oportuna a remissão à Exposição de Motivos n. 47 do Ministério da Economia, que acompanha a Proposta de Emenda. No texto, verifica-se que o espírito do legislador, ao instituir o novo princípio, voltou-se a dirimir as “amarras inerentes à burocracia estatal”, em um novo contexto no qual “a inovação deve ser reconhecida, valorizada e almejada pela Administração e por seus agentes”.

Nota-se que o legislador atribuiu um caráter eminentemente programático á inovação, como algo que sempre deve ser almejado. Tal ideia é corroborada especialmente pela manifestação de que o estabelecimento da inovação como princípio servirá “como símbolo de uma nova era do Estado brasileiro, deixando para trás a mera conservação burocrática, que, desconectada dos tempos atuais, tem se revelado ineficiente para atender aos anseios do povo brasileiro”.

A inovação, sem sombra de dúvidas, é bem-vinda e deve ser estimulada no âmbito da Administração Pública, uma vez que procedimentos inovadores, em geral, trazem consigo economia de recursos e qualidade de resultado. Todavia, elevar tal preceito à categoria de princípio constitucional é, no mínimo, problemático.

Isso porque os princípios clássicos da Administração não podem ser relativizados ou entendidos como normas de meros efeitos dirigentes. Tais princípios vinculam todos os atos da Administração Pública,. Caso contrário, restaria desvirtuada a gestão dos negócios públicos e olvidado o que há de mais elementar para a boa guarda e zelo dos interesses sociais, como leciona Hely Lopes de Meirelles[1].

A vinculação irrestrita da Administração Pública à obediência dos princípios é verificada, com clareza, em matéria de controle dos atos administrativos. Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a “finalidade do controle é a de assegurar que a Administração atue em consonância com os princípios que lhe são impostos pelo ordenamento jurídico, como os da legalidade, moralidade, finalidade pública, publicidade, motivação, impessoalidade”[2]. Tal controle constitui, inclusive, “poder-dever dos órgãos a que a lei atribui essa função, precisamente pela sua finalidade corretiva; ele não pode ser renunciado nem retardado, sob pena de responsabilidade de quem se omitiu”[3].

Em contornos práticos, a força normativa obrigatória dos princípios constitucionais da administração pode ser verificada no julgamento do Recurso Extraordinário n. 579.951/RN, em sede de Repercussão Geral, no qual o Supremo Tribunal Federal fixou a tese de que “a vedação ao nepotismo não exige a edição de lei formal para coibir a prática, dado que essa proibição decorre diretamente dos princípios contidos no art. 37, caput, da Constituição Federal”.

Os princípios constitucionais da administração têm, assim, caráter normativo autônomo, de modo que a mera violação é capaz de ensejar a ilegalidade do ato administrativo em concreto. É nesse ponto, portanto, que se verifica a problemática envolvida na inclusão da inovação no rol do art. 37 da Constituição Federal.

Em primeiro lugar, é evidente a contradição do legislador que eleva a inovação ao patamar de princípio constitucional da administração, mas a define como mero “símbolo de uma nova era” e algo que “deve ser almejado”. A atribuição de caráter meramente diretivo ao novo preceito viola a própria razão de ser dos princípios da administração pública, posto seu caráter vinculante e obrigatório.

Vale dizer que tal contradição se converte em verdadeira desnecessidade, ao se considerar que já existe norma constitucional de caráter programático que faz direta menção ao dever do estado de formar e fortalecer a inovação nos entes públicos[4].

Em segundo lugar, cumpre mencionar que, para uma vasta gama de atos administrativos, principalmente aqueles de procedimento tipificado, uma postura “inovadora” pode ser interpretada como algo indesejável. É o caso de atos como de concessão de aposentadoria, exoneração, publicação de edital de licitação, entre outros. A inovação no âmbito de tais atos administrativos, que possuem regras e procedimentos específicos, representariam, em verdade, um risco à segurança jurídica. Questiona-se, assim, se, de fato, uma inovação, necessariamente, importa num melhor ato administrativo.

Em terceiro lugar, caso seja atribuída força normativa ao princípio da inovação, seria necessário conceber a dicotomia entre atos inovadores – que estariam em conformidade com o preceito – e atos “não inovadores” – que estariam em desconformidade. Os atos administrativos “não inovadores” seriam, consequentemente, de inevitável anulação. Afinal, de igual modo, um ato administrativo que não atende ao princípio da legalidade deve  anulado.

Em quarto lugar, destaca-se o caráter controvertido do conceito de “inovador”. Com efeito, princípios têm, por característica, a abstração, mas que se corporizam nas situações concretas, quando imbuídos por contextos sociais, culturais, éticos, morais, entre outros, que circunscrevem e permeiam o direito. No presente caso, há razoáveis dúvidas se este “símbolo de uma nova era” realmente emerge desse meio social ou de um mínimo debate público, ou se decorre, em verdade, de uma mera vontade governamental, o que parece ser o caso, dada a explícita motivação do legislador de algo que “deve ser almejado”.

Dessa feita, a inserção na carta política de uma “intenção”, “vontade”, na forma de princípio, descolada de contextos do meio social que de fato o compreendam como valor a ser perseguido, revela-se temerária, especialmente ante o alto risco de ensejar interpretações particularistas.

Diante dessa problemática, parece-nos que dois cenários poderiam ser traçados. No primeiro, permitir-se-ia uma relativização do princípio da inovação, aceitando-se o seu caráter meramente programático. A segunda alternativa seria considerar que há força normativa, com todas as ressalvadas já feitas, tal como os demais princípios constitucionais da administração. Em qualquer das hipóteses, verificam-se deficiências práticas.

Na primeira, há grande perigo de instabilidade jurídica. Uma vez que tal princípio fora elencado em grau paritário no rol do art. 37 da Constituição, aceitar sua relativização seria precedente para a relativização e enfraquecimento de todos os demais princípios, o que comprometeria todo o sistema jurídico de direito administrativo.

A segunda hipótese, por sua vez, somente poderia ser concebida com a criação de critérios objetivos para a classificação dos atos administrativos como inovadores ou “não inovadores”. É o que se fez necessário em experiência semelhante, na qual a jurisprudência pátria criou o controverso parâmetro do “homem médio” para que fosse atestada a conformação dos atos ao princípio da boa-fé objetiva – princípio com igual grau de subjetividade e abstração.

Da mesma maneira, seria necessário estabelecer balizas que possibilitassem a aplicação concreta do princípio da inovação aos atos administrativos, o que, novamente, coloca sob questão se seria o caso de elevar essa “intenção” ao nível de princípio, pela notória descaracterização da abstração que é essencial. Adicionalmente, ter-se-ia constante conflito com os supramencionados atos administrativos de procedimento estritamente tipificado, nos quais não cabe a adoção de uma postura inovadora por parte dos agentes.

Conclui-se, em última análise, que a atitude do legislador de elevar a inovação ao patamar de princípio constitucional da administração é, no mínimo, questionável. Caso os princípios da nova geração sejam, de fato, incorporados ao texto constitucional, vê-se o risco de que recairá em última instância ao poder judiciário delimitar o seu âmbito de aplicação.

 

Publicado por JOTA 

30 set
STF julga se existe o direito ao esquecimento no Brasil

Direito não é previsto na legislação, mas tem sido invocado com frequência em ações.

O Supremo Tribunal Federal (STF) julga,  a fixação, ou não, de um novo direito: a ser esquecido. O processo em que é discutido o direito ao esquecimento está pautado para a sessão de quarta-feira (30/9). O conceito não é previsto na legislação brasileira, mas tem sido muito discutido nas instâncias inferiores devido a inúmeros pedidos de remoção de conteúdo que chegam aos tribunais. A controvérsia coloca, de um lado, a liberdade de expressão e informação e, de outro, direitos à honra, intimidade, privacidade e ressocialização.

O conceito do direito ao esquecimento ganhou destaque a partir de um processo envolvendo o Google na Espanha e julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em maio de 2014.

Mario Costeja González é um advogado espanhol, que morava em um apartamento em Barcelona. Depois de deixar de pagar dívidas com a seguridade social, o imóvel foi levado a leilão, conforme se noticiou no jornal La Vanguardia, no ano de 1998. A dívida, no entanto, foi paga, e a venda judicial suspensa. A partir de 2009, ele passou a buscar a desindexação de seu nome das ferramentas de busca.

A corte europeia, no caso, assentou a possibilidade de se solicitar a remoção de resultados de busca, independentemente da manutenção do conteúdo no site de origem, sob o argumento de que seria legítimo dificultar o acesso a material que, pelo decurso do tempo, tivesse se tornado inadequado, irrelevante ou excessivo.

O caso em discussão no Brasil, no entanto, trata de uma disputa sobre a transmissão de um programa da TV Globo a respeito de um crime ocorrido na década de 1950, e tem, segundo especialistas, contornos bem diferentes e mais extensos.

Como o recurso extraordinário (RE) 1.010.606 teve repercussão geral reconhecida, estudiosos, empresas e setores da sociedade civil que trabalham com liberdade de expressão têm o receio de que o debate possa ser ampliado para atuação na internet, de modo a limitá-la. De acordo com o Google, por exemplo, o Brasil é um dos países do mundo onde a empresa mais registra pedidos de remoção de conteúdo.

Para o professor da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Gustavo Binenbojm, é preciso enfatizar: o direito à informação, de informar e ser informado, não está sujeito a nenhum prazo prescricional. Ele é advogado da TV Globo no caso Aída Curi, discutido no processo.

“Estando em repercussão geral, o STF tem o dever de fixar uma tese que vai orientar todos os casos futuros, o que é muito importante. Um dos desafios é a amplitude que vem sendo dado ao direito ao esquecimento. O mero decurso do tempo não dá efeito de decadência ou prescrição. Esse direito não é reconhecido em nenhum lugar da ordem jurídica brasileira”, diz.

Desta forma, Binenbojm afirma que não seria possível aplicar um direito ao esquecimento contra a imprensa. “É preciso lembrar que o caso não envolve erro de cobertura, incorreção, falha. Não havia dúvida de que os fatos eram verdadeiros. Além disso, os fatos eram de interesse público e até histórico, e tinha uma longa trajetória narrada pela imprensa. Um dos irmãos escreveu um livro sobre o crime”, conta, afirmando que dar um direito ao esquecimento, neste caso, seria aplicar uma censura pelo retrovisor, já que a imprensa não poderia ser desautorizada a retratar um caso apenas pelo fato de ser antigo.

No julgamento em repercussão geral, o Supremo, ao fixar a tese, pode tratar apenas da imprensa tradicional, ou projetar a discussão para a internet, ou, ainda, de como as ferramentas de busca servem para acesso à informação neste meio.

“Reconhecer um direito ao esquecimento seria reconhecer um direito baseado em parâmetros muito vagos, ambíguos, amplos”, reforça. “Toda vez que a imprensa fosse trabalhar um caso antigo, teria que saber se tem interesse público ou histórico, ou ter alguma autorização por parte das pessoas envolvidas. é um parâmetro muito elástico. E a imprensa não é livre se tiver de ter esse tipo de autorização. Não há espaço no constitucional brasileiro desse tipo de alegação”.

A restrição em reportar fatos históricos tem sido imposta em decisões de tribunais inferiores, numa afronta à liberdade de imprensa e ao direito à informação.

No ano passado, por exemplo, o UOL foi condenado pela 10ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), por 3 votos a 2, a indenizar um bacharel em Direito em R$ 30 mil por ter relatado um crime cometido em 1994 pela irmã dele contra os próprios pais — um caso que foi comparado ao de Suzane von Richthofen, já que além de as vítimas serem de classe média alta, elas foram executadas enquanto dormiam, com a participação do namorado da irmã do rapaz.

O relator designado foi o desembargador Coelho Mendes. Para ele, não há “motivo para a manutenção da notícia, que não trás (sic) informação de cunho social relevante, senão fato que marca negativamente a vida” do bacharel.

Mendes disse que ao sopesar o conflito de interesses entre a liberdade de informação e o direito à intimidade, o magistrado deve considerar o grau de utilidade pública, a atualidade da notícia, dentre outros fatores.

Definição do conceito

Luis Fernando Moncau dedica anos de pesquisa a respeito do tema. Para ele, no Brasil, a expressão ainda suscita uma série de elementos que não querem dizer exatamente o que seria um direito ao esquecimento. “Fala-se sobre banco de dados, negativados, Código de Defesa do Consumidor, ressocialização, tem quem fale que habeas data é direito ao esquecimento. Faz-se uma confusão”, diz. Assim, para ele, o STF tem a oportunidade de delimitar o conceito.

“A minha preocupação é que a gente, por usar uma expressão nova, que empresta força renovada para alguns preceitos, acabe decidindo casos que teriam outro resultado se fosse julgado na base do direito à intimidade. Neste caso, há interesse público, foi amplamente veiculado. Se fosse pelo ângulo do direito à intimidade o pedido de remoção não vingaria, mas se você traz o direito ao esquecimento, considera-se de outra forma”, exemplifica.

Para o pesquisador, os traços em comum no debate que se relacionam com direito ao esquecimento seria a existência, em primeiro lugar, de uma informação. “Assim, afasta-se outras coisas que são chamadas de direito ao esquecimento e não o são, como maus antecedentes, prescrição”, diz. Além disso, essa informação teria de ter sido afetada de alguma forma pelo tempo, já que não se poderia falar nesse direito para algum episódio muito recente. Por fim, seria uma informação veiculada de forma lícita, ou seja, não é mentira, difamação, ou violação de intimidade.

Assim, os ministros terão de ponderar sobre o efeito jurídico da passagem do tempo: o tempo pode operar sobre a ideia de interesse público? De pessoa pública? O caso europeu trata de indexação em ferramentas de busca, enquanto o brasileiro é sobre televisão. Moncau afirma ter preocupação de que haja uma importação da discussão feita lá, com outras bases e outros fundamentos, para o contexto local.

Caso Aída Curi

O caso concreto que chegou ao STF foi o de Aída Jacob Curi. Ela nasceu em Belo Horizonte, se mudou para Goiás e, de lá, para o Rio de Janeiro com a família. Conheceu Ronaldo Guilherme de Souza Castro, 19 anos, em 14 de julho de 1958, em Copacabana. Na mesma tarde, Aída subiu com Ronaldo até a cobertura de um prédio, onde foi espancada e estuprada por Ronaldo e dois amigos. Quando ela desmaiou, eles tentaram simular um suicídio, a empurrando do parapeito. O assassinato de Aída Curi ficou marcado como o acontecimento que representou o fim da inocência do bairro de Copacabana.

O caso foi dramatizado pela TV Globo em 2004, no programa Linha Direta Justiça. A família da vítima, então, foi à Justiça pedir uma indenização pelo fato de o crime ter sido relembrado, encenado e transmitido em cadeia nacional, enquanto os parentes gostariam de esquecer a brutalidade pela qual Aída Curi passou.

Ainda que no caso concreto a discussão gire em torno de um programa de televisão, as instâncias inferiores já vêm discutindo o tema no contexto da internet, bem como o próprio Supremo já incluiu este outro ambiente no debate. O ministro Dias Toffoli, relator do caso, chamou uma audiência pública sobre a matéria em 2017.

Proteção à memória

Da forma como se coloca no Brasil, o direito ao esquecimento pode, segundo a advogada que representa a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) Tais Gasparian, afetar o direito à memória da nação. “O tal direito ao esquecimento também atenta contra a proteção de arquivos. É um direito constitucional, previsto, um princípio de guarda e proteção de arquivos, bibliotecas e, com isso, se guarda a história de um povo. Pretender que não se fale mais, que se retire de internet, atenta também contra a proteção e guarda de arquivos”, aponta.

Para ir além, ela explica que, mesmo no caso de Aída Curi, a demanda não teria cabimento. Isto porque a questão do direito ao esquecimento não foi suscitada desde o começo, mas passou a ser usada no fim da tramitação do caso na segunda instância. De início, a família buscava uma indenização pela exposição da história.  “Isso já me faz pensar que essa questão do direito ao esquecimento é amplamente oportunista neste processo. se tivessem pago um valor, não teria esse pedido.”

Da mesma forma, ela ressalta que o arquivo do episódio do Linha Direta não está disponível. Mesmo ela, enquanto advogada que atua no caso enquanto amicus curiae, não tem acesso às imagens. “Trata-se, então, de impedir que se fale de Aída, não de esquecer. Não fosse por nada disso, ainda tem a configuração da censura prévia, porque não se pode mais falar da pessoa. Viola-se o direito à memória de um país, de uma nação, de uma condição feminina, de um crime grave, que marcou uma geração, viola-se diversos preceitos constitucionais”, enfatiza.

No Supremo

O STF tem uma longa tradição da defesa da liberdade de imprensa, de informação, de manifestação. Ainda que, no que concerne às discussões sobre internet a Corte não teve muitas oportunidades de fortalecer jurisprudência, os especialistas são otimistas de que o plenário vai seguir a linha construída até aqui.

No início deste mês, em evento feito pela Abraji, o ministro Alexandre de Moraes adiantou posição que pode apresentar no julgamento. A respeito de pessoas que pedem a veículos de comunicação que retirem do ar reportagens antigas, sobre eventuais crimes cometidos, ele disse se tratar de discussão complexa, mas se colocou contra a possibilidade: “Não se pode apagar o passado”.

Antes de Moraes chegar à Corte, o colegiado decidiu, por unanimidade, que a publicação de biografias não autorizadas não fere a Constituição. Ao julgar a ADI 4.814, o plenário julgou ser inconstitucional a exigência de autorização prévia para a publicação de biografias. O precedente é apontado como importante para a discussão em jogo no dia 30 de setembro.

Ser esquecido

Um acórdão recente, de 15 de setembro, é outro exemplo de como o tema é amplo e pode ser acionado em diferentes circunstâncias, enquanto não há definição mais clara. A 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, negou um pedido a um homem condenado em 2008 por estupro de uma menina de 9 anos, e que, agora, em liberdade provisória, quer ter este fato esquecido por ter dificuldade de encontrar trabalho.

O homem acionou a Justiça contra o Google e a Microsoft para que as empresas retirassem dos sites de busca os links que remetiam à notícia do crime. Ele afirma que ingressou com ação de revisão criminal para tentar provar inocência, e que não consegue recolocação no mercado e consequentemente alimentar sua família de forma digna, por causa da notícia. O homem, então, apela ao direito ao esquecimento em nome da dignidade da pessoa humana. O caso tramita em segredo de Justiça com o número 1000007-49.2019.8.26.0344.

“A primeira ideia que me ocorreu quando da leitura da inicial, foi a de associar a pretensão do ofendido à conduta de alguém que, desejando não se lembrar de algo que a desagradou quando da leitura de um livro, resolve apenas rasgar seu índice, para que ele não mais lhe remeta àquele assunto, deixando todo seu conteúdo, todavia, intocado”, disse o desembargador.

Publicado por JOTA

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