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13 jun
A contradição entre meios e fins na lógica da Lava Jato

As conversas reveladas pelo The Intercept Brasil entre o então juiz federal Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol colocam em xeque a operação contra a corrupção iniciada em Curitiba em 2014

Em 2004, o então Juiz Sérgio Moro publicou um artigo que se tornaria um clássico. Em “Considerações sobre a operação Mani Pulite”, Moro, a pretexto de analisar a operação italiana que inspirou a Lava Jato brasileira, revelou grande parte de sua própria estratégia na condução daquela que se tornou a mais importante investigação de corrupção da história do país.

A certa altura do texto, Moro escreve que “é ingenuidade pensar que processos criminais eficazes contra figuras poderosas, como autoridades governamentais ou empresários, possam ser conduzidos normalmente, sem reações”.  E acrescenta que, muito embora “um Judiciário independente, tanto de pressões externas como internas” seja “condição necessária para suportar ações judiciais da espécie”,  “a opinião pública, como ilustra o exemplo italiano, é também essencial para o êxito da ação judicial”.

Sérgio Moro deixava claro que o processo penal deveria ser orientado pelo princípio da efetividade e que, para isso, o peso da opinião pública era indispensável. A visão de processo penal descrita – e defendida – no artigo tornou-se a visão prevalecente entre os membros da Lava Jato, e chegou, inclusive, ao Supremo Tribunal Federal, com a mudança de entendimento sobre a prisão após condenação em segunda instância. Ela pode ser descrita como a prevalência, no âmbito do processo penal, da racionalidade substantiva sobre a racionalidade formal, típica dos juristas. Para os atores da Lava Jato, os fins do processo penal – avaliados a partir de uma racionalidade substantiva – deveriam orientar e, quando necessário, superar o apego aos meios com o qual os juristas treinados na racionalidade formal estavam acostumados a operar.

Essa prevalência dos fins envolvia uma instrumentalização do processo penal, cujas regras deveriam ser interpretadas e aplicadas com vistas a atingir um determinado objetivo: a condenação e prisão, em tempo rápido, de acusados de corrupção. Em outras palavras, a máxima efetividade do sistema criminal. É somente sob essa lógica que se pode entender entender diversas decisões controversas proferidas pelo então Juiz Sérgio Moro.

O caso mais emblemático foi, sem dúvidas, a divulgação dos áudios entre Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva. A decisão de divulgação, fundamentada no interesse público da conversa, foi posteriormente anulada pelo Supremo Tribunal Federal. É difícil que Moro não soubesse que se tratava de uma medida de exceção: mas ela se justificava na lógica da Lava Jato. Ela era um meio necessário à obtenção de um fim visto por eles como nobre e meritório.

Mas a lógica dos meios e fins que orientou toda a concepção de processo penal da Lava Jato – justificando, por exemplo, longas prisões preventivas, conduções coercitivas e regras de direito probatório pouco ortodoxas – dependia de pelo pelos menos três elementos: a nobreza dos fins, a necessidade dos meios e a excepcionalidade dos desvios. Em outras palavras: o sucesso, inclusive entre membros do Judiciário, da visão de processo penal defendida no âmbito da Lava Jato dependia de que os desvios de padrões estritos de legalidade fossem raros e fortemente justificados sob o ponto de vista de uma racionalidade substantiva.

O desvio reiterado de regras era uma estratégia autodestrutiva porque, afinal, ainda era de processo que estávamos falando. Se houve aqueles que defendessem a decisão de Sérgio Moro na divulgação do famoso “áudio do Bessias” era porque se acreditava que a medida tanto estava justificada quanto não colocava em xeque o núcleo de garantias processuais dos envolvidos. Ela era adequada justamente porque era única. O respeito ao _rule of law_, entendido a partir de uma visão substantiva, estava garantido pela excepcionalidade da medida.

Essa concepção de meios e fins colaborou para o sucesso dessa nova visão de processo penal. Muitos acreditavam que pequenos desvios da legalidade não comprometiam o núcleo duro das garantais formais dos acusados, além de favorecer certos fins importantes que deveriam ser perseguidos através do processo.

O conteúdo das mensagens divulgadas pela agência de notícias The Intercept Brasil, no entanto, põe em xeque a legitimidade da lógica de meios e fins que orientou a Lava Jato. As conversas entre Moro e Deltan Dallagnol, líder da força tarefa do MPF, revelam um Juiz diretamente engajado com o órgão acusador, orientando o Procurador da República em linhas de investigação, ordem de operações e até em situações mais prosaicas, como o desempenho de uma colega na condução de audiências.

As conversas não só não são normais, como flertam, diretamente, com as causas de suspeição previstas no Código de Processo Penal. Espera-se do Juiz – e mesmo o Juiz criminal – que seja um ator imparcial e neutro, não um parceiro do órgão acusador. Mas será que não seria mais um caso em que a finalidade nobre perseguida por Moro e pelos procuradores justificaria a existência de um heterodoxo condomínio entre acusação e Juiz?

E é aqui que a justificativa padrão para muitas decisões de Sérgio Moro encontra dificuldades. Justificar mensagens como as divulgadas sob o pretexto de que a quebra da parcialidade do juiz se justificaria pela finalidade de “prisão de corruptos” desafia tanto a necessidade dos meios quanto sua excepcionalidade. Em que medida um relacionamento tão próximo, inclusive com dicas de ordens de operação, pode ser considerado um meio imprescindível para a efetividade do processo penal? Acaso a operação enfrentava um grave risco que exigiria a quebra da parcialidade do Juiz? Mais grave ainda: se até mesmo a parcialidade do Juiz e a equidistância das partes podem ser relativizadas pelo argumento finalístico da Lava Jato, qual a limite para a flexibilização dos meios em nome dos fins?

As conversas entre Moro e Dallagnol tanto não se justificam numa lógica de meios e fins como colocam em xeque a própria lógica que justificou tantas e tão variadas decisões proferidas no âmbito da operação Lava Jato. Quando o Direito gradativamente abre mão dos meios, não se sabe quais deles restarão intactos na procura pelos fins.

 

 

Publicado originalmente em Nexo Jornal

 

 

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3 Comentários em "A contradição entre meios e fins na lógica da Lava Jato"

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Carlos Márcio

Excelente abordagem, professor. Passo a refletir, após a leitura de seu texto, e tendo em vista os desdobramentos da operação quanto à ascensão política de seu protagonista e a criação de um fundo bilionário com recursos da Petrobrás – principal empresa investigada na operação – se esses “fins” realmente eram nobres, se eram (e são) relacionados ao combate à corrupção ou à edificação de um projeto de poder.

moraes benicio

Horácio sempre sensato e com olhar clínico

Vinícius Oliveira

Que artigo incrível, muita gente precisa ler isso, principalmente do próprio Direito…

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