Circula a notícia de que tramitam no MEC, em fase final, vários pedidos de autorização de cursos de Direito na modalidade a distância (EaD). Esses processos teriam recebido avaliações favoráveis, realizadas virtualmente pelo Inep. Durante a pandemia, as avaliações in loco teriam sido simplificadas, com a substituição por entrevistas online e verificação das instalações por câmeras. Dessa forma caminham para a abertura de milhares de vagas, que concorrerão com a já abundante oferta no ensino jurídico presencial.
Reagindo a essa perspectiva preocupante, vozes da área jurídica pronunciaram-se contrariamente, alegando que o ensino a distância rebaixaria a qualidade da formação. O argumento procede, mas por razões mais profundas que aquelas que vêm sendo invocadas. A educação a distância vem sendo utilizada há décadas em todo o mundo com excelentes resultados, quando oferecida com seriedade e responsabilidade acadêmica. O grande problema no Brasil não é a EaD, em si, mas a falta de regulação e fiscalização, que tem permitido a operação de instituições com foco principal no lucro, sem compromisso com a qualidade da oferta.
Em relação à regulação da EaD, o MEC havia estabelecido exigências que permitiam acompanhamento estatal, tais como polos presenciais com estrutura mínima. Mas elas vêm sendo seguidamente relaxadas. Desde 2017, o credenciamento especial para EaD e a autorização de novos cursos foram facilitados e passou a ser permitida a criação de novos polos sem vistoria prévia (Decretos nº 9.235/17 e 9.057/17 e Portaria MEC nº 11/2017). Se a educação superior já tinha virado um negócio, com a EaD alargada pelo afrouxamento dos freios regulatórios, o negócio escalou exponencialmente, sem qualquer garantia de qualidade.
As matrículas no ensino superior cresceram, no Brasil, de 2,37 para 8,6 milhões em vinte anos, de 1999 e 2019. Isso é positivo e segue tendência observada nos países desenvolvidos nas últimas décadas, que elevaram a escolaridade de sua população buscando aumentar a produtividade no trabalho. Além disso, trata-se de meta prevista no Plano Nacional de Educação, tanto o de 2014 (Lei n. 13.005), como o anterior, de 2001 (Lei n. 10.172). O problema, portanto, não está na expansão, mas no fato que ela vem sendo feita, na maioria dos casos, à margem de qualquer garantia de qualidade.
O crescimento das matrículas no período recente revela outro componente alarmante da educação mercantilizada: a crescente cartelização do setor privado. Dos 6,5 milhões de matrículas (76,1% do total) que o sistema privado oferece, mais da metade (53%) está concentrada em apenas 10 grupos empresariais do setor educacional, como demonstra a tabela 1.
Tabela 1: Matrículas, novos ingressos e número de instituições privadas de educação superior (IES) em 2019
2019 | Matrículas (milhões) | Matrículas % | Novos ingressos(milhões) | Novos ingressos% | Número de IES | Número de IES% |
Setor privado | ||||||
10 maiores grupos | 3,46 | 52.8% | 1,96 | 63.6% | 307 | 13.2% |
Outras IES privadas | 3,09 | 47.2% | 1,12 | 36.4% | 2.021 | 86.8% |
Total do setor privado | 6,55 | 100% | 3,08 | 100% | 2.328 | 100% |
Fonte: Levantamento dos autores com base nos microdados do Inep (Censo da Educação Superior 2019)
Esse processo continua em marcha. Contabilizadas as recentes aquisições, apenas 4 grupos privados (Kroton, Unip, Uniasselvi e Estácio) detêm cerca de 33% do total de alunos matriculados no ensino superior privado do país. E a estratégia de cartelização está inequivocamente correlacionada à utilização de EaD. Um indicador disso é que 76,3% do total de alunos matriculados em EaD no país em 2019 estavam concentrados em IES desses 10 maiores grupos educacionais.
Na área de Direito, em que 90% dos alunos frequentam instituições particulares, ainda não são oferecidos cursos na modalidade EaD. Mas o ensino presencial é igualmente cartelizado, com um terço dos estudantes de Direito das IES particulares matriculados em apenas 8 grupos privados, como mostra a tabela 2.
Tabela 2: Matrículas, novos ingressos e número de IES no curso de Direito em 2019
2019 | Matrículas(milhares) | Matrículas % | Novos ingressos (milhares) | Novos ingressos% | Número de IES | % Número de IES |
Setor privado | ||||||
8 grupos privados | 257,1 | 34,2% | 97,3 | 40,9% | 240 | 21,0% |
Outras IES privadas | 495,6 | 65,8% | 140,8 | 59,1% | 902 | 79.0% |
Total do setor privado | 752,7 | 100% | 238,1 | 100% | 1,125 | 100% |
Fonte: Levantamento dos autores com base nos microdados do Inep (Censo da Educação Superior 2019)
Na estratégia de expansão lucrativa, os cursos de Direito em EaD seriam uma “fronteira comercial” a abrir. Vale lembrar que, a despeito dos milhares de vagas disponíveis e das dificuldades para aprovação nos exames da OAB e nos concursos públicos, os cursos de Direito seguem com alta demanda. Portanto, o cenário que se desenha é o de um novo filão para as “fábricas de diplomas”.
Para que não se diga que se trata de preconceito, vale examinar os dados das avaliações educacionais realizadas pelo Inep, nos marcos do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), instituído pela Lei n. 10.861/2004.
O desempenho dos alunos de Direito do Enade 2018 são claramente distintos quando se comparam os tipos de instituições em que se formaram. Enquanto nenhum aluno das Instituições Federais e apenas 11% dos alunos das Instituições públicas Estaduais fazem um curso com conceito Enade insuficiente (1 ou 2, numa escala de 1 a 5), cerca de um terço dos alunos das IES particulares estão em cursos com conceito Enade insuficiente.
O retrato é similar para outros cursos de alta demanda, como por exemplo Pedagogia ou Serviço Social. Em Pedagogia, em que 55,5 % dos alunos estavam na modalidade EaD em IES integrantes do bloco dos 10 maiores grupos privados, 65% desses alunos estavam em cursos com conceito Enade insuficiente comparado com 22,2% dos alunos de todos os cursos de presenciais. A situação é ainda mais dramática para Serviço Social, em que 62,4% de todos os alunos do país estavam fazendo EaD nos 10 maiores grupos educacionais, sendo que 93,1% desses alunos em cursos com Enade insuficiente.
Esse não é um dado fortuito, mas o retrato de uma tendência de queda de desempenho dos alunos no Enade e de evasão nos cursos de IES com grande número de alunos. Isso vem se agravando no país, à medida em que se expande essa EaD como estratégia mercantil dos grandes grupos privados, conforme demonstrado no trabalho “Tendências de precarização do ensino superior no país.”
Voltando ao ponto inicial, entendemos que a deficiência de conhecimento dos formandos não é um problema intrínseco à modalidade EaD, que vem sendo utilizada com qualidade há décadas por importantes instituições em todo o mundo, tais como a UNED (Espanha) e a Open University (UK). Também no Brasil há inúmeros exemplos de boas práticas, como no consórcio Cederj, que congrega todas as universidades públicas do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ, UERJ, UFF, UNIRIO, UENF e UFRRJ) com cerca de 35 mil alunos na modalidade EaD. A comparação do desempenho desses estudantes por curso no Enade do ciclo 2017-2019 revelou níveis equivalentes entre a modalidade EaD e a presencial.
Os dados sobre Pedagogia e Serviço Social são alarmantes para as perspectivas dos cursos de Direito, na medida em que estão associados à estratégia de expansão comercial baseada na utilização maciça de EaD em cursos com alta procura e baixo custo, por não demandarem laboratórios experimentais.
Nesse contexto, a entrada dos cursos de Direito na modalidade EaD tem tudo para ser desastrosa, se não for precedida de uma revisão das regras de autorização de curso, além da supervisão dos cursos em andamento, em função de inúmeros indícios de práticas abusivas em EaD no país.
Publicado por JOTA
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