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11 maio
Probabilidade, fé e IA: o Teorema de Bayes – Nazareno Reis

Ciência e fé se complementam. Creio que Bayes também pensava assim.

A incerteza sobre o futuro pode trazer medo ou esperança. Prever o futuro tem sido uma tarefa que historicamente esteve entre a experiência prática e a fé religiosa, com assaltos de charlatanismo no entremeio. Embora a ciência nunca tenha abandonado o propósito de dominar esse campo vastíssimo do desconhecido, que são os fatos ainda por acontecer, faltava-lhe ferramentas confiáveis para emitir juízos consistentes. Até que surgiram as estatísticas e as probabilidades na matemática.

Mas não foi fácil apagar a conexão da presciência do futuro com o sobrenatural. Durante muito tempo, a zombaria em torno do tema foi a tônica entre os não iniciados. Benjamin Disraeli, que foi primeiro-ministro britânico e um escritor prolífico, dizia que há três tipos de mentiras: as mentiras, as mentiras deslavadas e as estatísticas. Já se disse também que a estatística é aquela técnica matemática que diz que se há duas pessoas em um restaurante e uma delas come um prato inteiro, é exato afirmar que cada um dos dois, em média, comeu meio prato…

Enfim, até hoje ainda há comentários escarnecedores sobre as estatísticas e probabilidades matemáticas, pelo fato de elas produzirem modelos e estimativas que podem não se verificar na prática — o que contraria a imagem de exatidão que se tem da matemática. A verdade, porém, é que esse campo do conhecimento tomou conta de grande parte das atuais ferramentas de criação de conhecimento a partir de dados colhidos esparsamente.

Viagem a Poitou

As probabilidades, como campo de estudo, nasceram da observação dos jogos de azar, por volta do ano de 1654. Segundo os historiadores, nesse ano, durante uma viagem à cidade de Poitou, Blaise Pascal, então um jovem com menos de 30 anos de idade, teria encontrado Antoine Gombaud, conhecido como Cavaleiro De Méré, um célebre jogador profissional que tinha grande habilidade com números. De Méré apresentou a Pascal um problema que havia fascinado os jogadores desde a Idade Média e que vários matemáticos notáveis, como Pacioli (1494), Tartaglia (1556) e Cardano (1545) haviam já discutido:

“Dois jogadores com igual perícia são interrompidos enquanto jogam um jogo de azar para uma certa aposta em dinheiro. Dada a pontuação do jogo naquela altura, como deve ser dividido o prêmio?”

Para ilustrar com um caso particular, imaginemos, por exemplo, que dois jogadores de baralho (A e B) apostem R$ 1.000,00, que será entregue a quem vencer mais partidas em 10 mãos seguidas. Estando o placar em A (5) x (2) B, um dos jogadores ou ambos resolvem interromper o jogo. Como dividir o prêmio em termos matematicamente rigorosos? (Admitamos que não há um regulamento jurídico nem um acordo para a situação).

Nazareno Reis juiz

Cidade de Poitou – França

Poder-se-ia resolver a questão facilmente olhando para trás, isto é, para o que acontecera no jogo até antes da interrupção: neste caso, a quantia de R$ 1.000,00 poderia ser dividida em 7 partes iguais, ficando cinco partes para o jogador A e 2 partes para o jogador B. Mas aí deixaríamos de lado todos os eventos futuros e incertos que não ocorreram, e que justamente constituem o azar/sorte do jogo. Inclusive deixaríamos de considerar que B ainda poderia empatar o jogo, caso ganhasse as três partidas restantes.

Ao olharem para frente, ou seja, para as partidas que não se realizaram, Fermat e Pascal intuíram que a resposta adequada para a divisão do prêmio seriam frações calculadas segundo um processo combinatório dos vários resultados futuro possíveis (todos considerados igualmente prováveis). Assim, preservando a álea do jogo, se poderia fazer um cálculo para incluir eventos incertos na distribuição do prêmio. Nascia ali o estudo da probabilidade.

O problema que fascinou Pascal 

O problema fascinou Pascal que, mais tarde, o apresentou a Fermat (a esta altura um juiz de meia idade, que gostava mais de matemática que de direito).  Desenrolou-se, a partir disso, uma troca de correspondência entre os dois que se tornaria célebre, pois tais cartas seriam consideradas os documentos fundadores da Teoria das Probabilidades. E o problema apresentado por De Méré ficou conhecido como “O problema do jogo interrompido”.

Nazareno Reis juiz

Pascal

Por falar em jogo interrompido, no Brasil tivemos um caso real no futebol que bem poderia ter suscitado debates matemáticos à época. Isso ocorreu na final do Campeonato Paulista de 1973, entre Santos e Portuguesa. A partida terminou em um empate sem gols no tempo normal e na prorrogação, tendo sido necessária a cobrança de pênaltis para conhecer-se o campeão. A Portuguesa cobrou e perdeu a sua terceira cobrança, quando o placar estava 2 x 0 para o Santos (que também já executara a sua terceira cobrança). O árbitro Armando Marques e sua equipe, então, cometeram um grave erro aritmético e encerraram o jogo, declarando o Santos campeão.

De fato, se eram 5 cobranças para cada lado, obviamente o árbitro fez as contas erradas, pois o Santos poderia perder as duas cobranças que lhe faltavam e a Portuguesa teoricamente bem poderia converter as suas duas, levando o jogo a um 2 x 2.

Inteligência humana probabilística

A divisão do campeonato foi para as instâncias desportivas e ambos os times foram declarados campeões (uma solução mais que salomônica). Mas, em termos de Teoria da Probabilidades, o Santos foi “muito mais campeão” que a Portuguesa, já que havia apenas uma chance (Santos perder os dois pênaltis e a Portuguesa marcar os dois), entre 16 combinações possíveis, de a Portuguesa estender a disputa de pênaltis e voltar novamente a ter possibilidade igual de vitória. Isso dava 6,25% de probabilidade de prolongar o jogo (sem garantia alguma de que nos pênaltis singulares a Portuguesa venceria). E nem estou considerando o fato de que um dos cobradores do Santos que ainda faltava cobrar a penalidade máxima era ninguém menos que Pelé.

Na perspectiva das probabilidades, o Santos deveria mesmo ter sido declarado o único campeão. Mas, é claro, aqui vem o Calcanhar de Aquiles: probabilidade alta não quer dizer certeza de ocorrência. O título do Santos ficaria sujeito sempre ao questionamento de não ter sido conquistado de forma cabal.

As estatísticas e probabilidades, quando incorporadas ao processo decisório, são ferramentas poderosas para tornar as decisões mais objetivas, mas não prescindem do salto no escuro da incerteza. Isso é a sua fraqueza e a sua força.

pelé comemora gol

Pelé comemora vitória

Alguns estudiosos acreditam que a inteligência humana é, em grande medida, probabilística. As decisões cotidianas que tomamos seriam baseadas em um modelo embarcado nos nossos cérebros, que é capaz de assimilar a incerteza por um processo de comparação com o passado. Tudo muito rapidamente e, em grande parte, de forma inconsciente.

O alcance do que o ser humano decide probabilisticamente cobre um vasto conjunto de questões práticas, e não apenas jogos que são lineares no seu desenvolvimento. Para ficar em alguns exemplos comezinhos: ir ou não a um evento?, carne ou peixe no almoço?, que curso escolher na universidade?, etc.

Senso comum 

Para esse tipo de decisão sobre o futuro, normalmente empregamos dados do passado e acreditamos que os fatos semelhantes têm uma tendência a se repetir. Se fomos ao evento anterior e ele foi bom, provavelmente será de novo; se comemos peixe e isso foi uma experiência positiva, provavelmente repetiremos; se um conhecido escolheu cursar ciência da computação e teve êxito profissional, provavelmente escolheremos também essa área, etc.

Isso tudo é o que chamamos de bom senso ou senso comum. Um parêntese aqui: no Brasil, existe até determinação na lei para que o juiz, ao decidir, leve em conta o senso comum para admitir algo como acontecido ou não (sim, a probabilidade também serve para “decidir” o passado, quando ele não é totalmente conhecido). Tal recomendação está no art. 375 do nosso Código de Processo Civil, com uma linguagem esotérica: “o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece”.

Imagem mostra Thomas Bayes  e seus cálculos  -  Nazareno Reis juiz

Thomas Bayes (1701 – 1761)

Pode-se objetar, no entanto, que nem sempre as coisas se repetem e que o fato de um padrão decisório ter sido sucessivamente repetido (ainda que por várias gerações humanas) não lhe confere o status de verdadeiro.

Pensemos, por exemplo, na fé religiosa. Várias gerações têm acreditado, ao menos no Ocidente, que milagres impressionantes ocorreram no Oriente Médio há pouco mais de 2000 anos. Milagres tão impressionantes que ainda hoje uma grande parte da população de vários países acredita que ocorreram.

David Hume, o cético e brilhante ensaísta escocês do Século XVIII, colocou em dúvida esses milagres, justamente opondo-lhes o fato de que não há na experiência diária milagres. Como eles poderiam ser provados por simples testemunhos que passam de geração em geração?

O Cerne da Inteligência Artificial 

Mal sabia ele que, com essa blasfêmia, despertaria a inteligência aguçada de um religioso que traduziria essa questão em um conceito matemático profundo — que, mais de duzentos anos depois, seria o cerne da Inteligência Artificial.

Thomas Bayes, de fato, não gostou do que dissera Hume e decidiu que provaria o contrário, isto é, que os milagres eram, sim, plausíveis. Ele trouxe algo novo para as probabilidades: em vez de o cálculo levar em conta apenas os dados de certo momento, ele pensou num método que permitiria o recálculo constante da probabilidade, à medida que novos dados se acrescentassem ao conhecimento do calculista.

 Em outras palavras, ele concebeu uma probabilidade dinâmica, segundo a qual quanto mais evidências houvesse de um fato, mais a sua probabilidade de ocorrência aumentava, num processo incremental de crescimento da certeza sobre a incerteza. E vice-versa: quanto menos dados confirmatórios, menos certeza da ocorrência.

Na verdade, Bayes não conseguiu formalizar a sua ideia em termos matemáticos rigorosos, e nós sequer saberíamos sobre ela se Richard Price (aquele mesmo da famosa “Tabela Price”) não a tivesse publicado, em 1767, quando Bayes já era falecido. Foi Laplace, o “Newton Francês”, quem concebeu a poderosa fórmula que ficou conhecida como o “Teorema de Bayes”, nos seguintes termos:

Em que: P (A/B) é a probabilidade posterior ao cálculo; P (B/A) é a verossimilhança; P (A) é a probabilidade anterior da classe; P(B) é a probabilidade anterior do preditor.

O Teorema de Bayes não teve sucesso duradouro e era muito difícil de ser aplicado na prática por dois obstáculos fundamentais: 1º) pressupunha, para ser efetivo, da existência grande número de dados para recálculo (estatísticas); 2º) pressupunha uma infinidade de cálculos sucessivos, que seriam tanto mais precisos quanto mais fossem os dados e quanto mais rápidos fossem executados os cálculos (capacidade computacional).

Já dá para ver que o Teorema de Bayes havia sido feito para a Era da Informação. Num daqueles muitos exemplos em que a matemática cria ferramentas que somente serão úteis décadas ou séculos depois, o Teorema de Bayes assumiu papel central no desenvolvimento da Inteligência Artificial.

Inteligência Artificial -  Nazareno Reis juiz

Inteligência Artificial

Basta pensar que hoje os fenômenos físicos e humanos contam com registros cada vez mais abundantes, precisos e minuciosos. Desde o movimento de um corpo celeste, passando pelas precipitações pluviométricas, pelos movimentos das marés, pela compra e venda de produtos, diálogos e relacionamentos entre as pessoas, informações sobre doenças e medicamentos — enfim, tudo agora é registrado e produz dados. Esses dados, por sua vez, podem ser utilizados, em tempo real, para recálculos constantes e muito rápidos, por meio da crescente capacidade computacional de que dispomos.

Algoritmos que usam o Teorema de Bayes, hoje, podem produzir previsões cada vez mais acuradas nos mais diferentes campos, tais como: a criação de vacinas, previsão do tempo, tradução de idiomas estrangeiros, predição de crimes, investigações sobre doenças, quebra de senhas, análise de discursos, busca por novos planetas, busca e resgate em acidentes ocorridos em áreas remotas, etc.

Por trás do Teorema de Bayes há uma verdade muito simples: não se mantenha preso a uma hipótese, qualquer que seja ela; reúna o máximo dados, processe-os e acredite no que eles estão dizendo.

Ah, Bayes acreditou nos milagres até o fim…

Nazareno Reis, mestre em direito, juiz federal e juiz auxiliar no STF

Publicado originalmente em  PhiloTechJus

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