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02 nov
Os princípios vão salvar o Direito da inteligência artificial?

Artigo escrito pelo professor da Escola de Direito Aplicado Nazareno Reis

Não é exagero afirmar que o direito escrito foi a primeira tentativa de criar um mecanismo artificial de decisão que substituísse, ao menos em parte, os decisores humanos. Em marchas e contramarchas, com várias teorias explicativas que não vem ao caso explorar aqui, a ideia de que as leis escritas poderiam se tornar estruturas decisórias autônomas evoluiu lentamente ao longo da História até se incrustar no cerne da vida em coletividade por meio do chamado Estado de Direito, no qual se proclama com certo ar retórico, mas também com alguma razão, que os governantes são as leis e não os homens.

Não é casual, portanto, que os juristas, sobretudo na passagem histórica da oralidade para a escrita, tenham enfrentado, no mundo analógico, vários dos problemas com os quais o pessoal da Ciência da Computação hoje se vê às voltas, no mundo digital, a respeito da inteligência artificial — um mecanismo autônomo de decisão baseado em algumas regras programadas e em outras, extraídas dos dados, todas autoexecutáveis.

Tomo o caso de um problema em particular, que é bastante ilustrativo: a explosão combinatória.

explosão combinatória é um fenômeno que ocorre quando o número de combinações possíveis de elementos aumenta exponencialmente à medida que mais elementos são adicionados a um sistema. Isso representa um grande desafio para a inteligência artificial (IA), em razão da crescente dificuldade em lidar com o aumento massivo e rápido das possibilidades com as quais a IA tem de trabalhar.

Para exemplificar o conceito de explosão combinatória, consideremos um caso hipotético muito simplificado, apenas para a nossa reflexão: imaginemos que um desenvolvedor deseje criar um sistema inteligente de recomendação de filmes, a partir do perfil do assinante. Para isso, ele precisa considerar vários parâmetros sobre os filmes disponíveis, tais como gênero, atores, diretores, avaliações, temas e assim por diante. Agora, vamos supor que cada um desses parâmetros tenha apenas algumas poucas opções:

Gênero: Ação, Comédia, Drama, Ficção Científica, Romance.
Atores: Tom Hanks, Sandra Bullock, Will Smith, Meryl Streep.
Diretores: Steven Spielberg, Quentin Tarantino, Christopher Nolan.
Avaliações: 1 estrela, 2 estrelas, 3 estrelas, 4 estrelas, 5 estrelas.

Se ele quiser criar recomendações levando em conta apenas esses quatro fatores (na prática, sempre são muitos mais) já terá um número considerável de combinações possíveis. A escolha de um filme de cada gênero, um ator de cada lista, um diretor de cada lista e uma avaliação de cada categoria, produz 5 x 4 x 3 x 5 = 300 combinações possíveis para oferecer a cada cliente. Isso é um pequeno desafio computacional hoje, mas já foi grande no passado.

Agora, imaginemos que ele queira adicionar mais fatores para fazer a sugestão do filme, como o ano de lançamento, o país de origem, a idade média das pessoas que já assistiram, os três países em que mais foi assistido etc. As possibilidades aumentam muito rapidamente, porque cada fator adicional é multiplicado pelo número de combinações anteriores, exigindo um poder computacional cada vez maior para lidar com o problema. A simples inclusão do país de origem do filme no modelo, por exemplo, admitindo-se que houvesse dez países produtores, aumentaria em dez vezes o número de combinações, que saltariam de 300 para 3000 (um crescimento de impressionantes 900%).

Admitamos, além disso, que a empresa venha a ter alguns milhões de assinantes, cada um a ser perfilado a partir de seus dados pessoais, e mais ainda que sejam incluídos alguns milhares de filmes para serem classificados — está claro que o número de combinações relevantes entre os dados aumentará drasticamente.

É isso o que se chama, em matemática, de explosão combinatória. Trata-se de um desafio importante para os sistemas de IA; são requeridos algoritmos e técnicas avançadas para lidar com a complexidade exponencial e encontrar soluções eficazes, uma vez que, a partir de certo ponto, torna-se computacionalmente inviável ou muito dispendioso analisar todas as combinações possíveis em contextos do mundo real. Isso é particularmente relevante em áreas como recomendação, otimização, tradutores automáticos e grandes modelos de linguagem, como o ChatGPT, em que as “decisões automáticas” envolvem elevado número de parâmetros inter-relacionados.

O Direito, a partir do momento em que migrou da oralidade para a representação escrita, também enfrentou o problema da explosão combinatória, e o resolveu de maneira elegante. No início da escrituração do Direito, a essa altura ainda embaralhado com a religião — como o direito hebraico do Velho Testamento, por exemplo —, imaginava-se que seria possível disciplinar toda a vida em sociedade com um conjunto relativamente pequeno de regras escritas sagradas (pensemos nos Dez Mandamentos — Ex,20:1-17).

No entanto, à medida que as sociedades cresceram em complexidade e que surgiram novas visões de mundo, demandando disciplina inédita, tornou-se claro que era impraticável a concepção de soluções escritas prévias para cada situação conflituosa imaginável — mas, paradoxalmente, o número e a extensão dos textos legais nunca pararam de crescer nos países de direito escrito, e até nos de tradição consuetudinária.

Ou seja, a explosão combinatória do mundo dos fenômenos escancarou a fragilidade da ideia de que seria possível expressar todo o direito em mídia escrita, e isso tem sido objeto de longas discussões filosóficas ao longo da História, as quais estão fadadas a concluir ou a lutar contra o óbvio: a escrita é incapaz de representar tudo que existe e interessa para o direito.

É nessa linha que podemos lembrar aquela afirmação de Jesus: “o sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado” (Mc 2:27). Trata-se de uma constatação da insuficiência da velha regra textual (Ex 20:8) para regular a vida em toda a sua complexidade. E Paulo, depois, generaliza essa constatação, ao dizer que “a letra mata e o espírito vivifica” (2Cor 3:6).

Na tradição pagã não foi diferente. Platão, no Fedro (274b-277a), pela boca de Sócrates, observou que a escrita (que já então era usada na produção de leis havia mais de 300 anos, desde Draco) jamais poderia substituir completamente a palavra oral, pois a sua natureza era morta e dependeria sempre de um intérprete (“o pai do texto”, como ele chama). Mas, ao mesmo tempo, Platão percebeu que a introdução da escrita no cotidiano da sociedade não era inofensiva, pois ela iria alterar os processos mentais das pessoas, especialmente em relação ao cultivo da memória, e poderia, a longo prazo, não ser uma coisa boa (ironicamente, Platão só chegou até nós por causa dos seus escritos).

Narrando o mito de Thoth, a divindade egípcia da escrita, Platão afirmou que Tamuz, o rei egípcio de então, ao ser informado por Thoth do que seria a escrita e de todos os seus imensos benefícios, reagiu ceticamente, dizendo: Não é a mesma coisa inventar uma arte e julgar da utilidade ou prejuízo que advirá aos que a exercerem. Tu, como pai da escrita, esperas dela com o teu entusiasmo precisamente o contrário do que ela pode fazer. Tal coisa tornará os homens esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória; confiando apenas nos livros escritos, só se lembrarão de um assunto exteriormente e por meio de sinais, e não em si mesmos. Logo, tu não inventaste um auxiliar para a memória, mas apenas para a recordação. Transmites para teus alunos uma aparência de sabedoria, e não a verdade, pois eles recebem muitas informações sem instrução e se consideram homens de grande saber, embora sejam ignorantes na maior parte dos assuntos. Em consequência, serão desagradáveis companheiros, tornar-se-ão sábios imaginários ao invés de verdadeiros sábios“.

É muito interessante perceber como as discussões sobre a IA hoje seguem um caminho parecido, e o rei Tamuz ficaria surpreso ao saber que muitos pensam como ele em relação à IA (uma coisa é inventar uma arte, outra é avaliar sua utilidade). As promessas de grandes progressos pela IA, graças às possibilidades de manipulação massiva de dados (que são textos, embora em uma linguagem matemática), são normalmente rebatidas com o argumento de que esses mecanismos são como pensamentos mortos, que apenas simulam uma capacidade que de fato não têm e, por essa razão, estão condenados a serem sempre uma sombra deformada da inteligência biológica.

Repete-se, mais de dois mil anos depois, a mesma questão sobre os limites do poder de codificar a realidade. É que a cada nova mídia “artificial” interposta entre os seres humanos distanciamo-nos da oralidade primária (a mídia, por assim dizer, adâmica, na qual o cérebro humano evoluiu por milhares de anos); e sempre surge a velha dúvida sobre se os alegados progressos trazidos por essas novas mídias compensam os danos colaterais que elas produzem na convivência humana…

Mas, voltando ao Direito, como foi resolvida a questão da explosão combinatória? Ora, os juristas produziram textos que, em vez de apresentarem a solução antecipada de cada situação, mesmo que abstrata, remetiam ao intérprete/leitor (humano) a solução, por meio de cláusulas textuais de reenvio para humanos. Em terminologia atual, é aqui que entram em cena ferramentas hermenêuticas flexíveis, como a “finalidade da lei”, a “analogia”, os “costumes”, e, mais recentemente, os “valores” e “princípios jurídicos”, alternativas heurísticas que fundamentalmente nada mais são que apelos ao aplicador (humano) para que retome o processo de expressão da norma, usando o seu “elemento noético” (Viktor Frankl).

Tais métodos permitem que o direito lide com a explosão combinatória do mundo fenomênico de maneira adaptativa e orgânica — embora perdendo, é verdade, um pouco da sua previsibilidade.

Quando uma nova situação não está diretamente prevista nas regras escritas existentes, a analogia permite que os intérpretes encontrem respostas experienciais, baseadas em ocorrências similares já regulamentadas. Os costumes também podem ser usados com essa mesma finalidade adaptativa, ao refletirem práticas sociais aceitas, e podem ser usados como base para decisões, quando não há uma regra escrita específica, ou quando esta é insuficiente ou incompleta.

Os princípios, por sua vez, são diretrizes muito abstratas que fornecem orientação sobre valores fundamentais, como justiça, igualdade e proporcionalidade. Eles atuam como guias flexíveis para a interpretação e aplicação do Direito em geral, dos quais apenas se pode ter uma ideia aproximada, mas não exatamente definível. Eles são ideais para o tratamento de questões completamente imprevistas pelos textos legais, que, não obstante, precisam de disciplina.

Esses mecanismos hermenêuticos flexíveis abrem o sistema jurídico para a integração humana posterior. Por um lado, eles são uma confissão de impotência da mídia escrita e, por outro, anunciam talvez um óbice operacional maior para todo processo futuro de automatização completa da aplicação do direito. Eles patenteiam a insuficiência das mídias artificiais em geral para captar aspectos esotéricos do pensamento humano em seu ambiente natural, que apenas podem ser sentidos e percebidos, mas não inteiramente codificados.

A IA, por mais avançada que seja, se utilizada para a aplicação de regras jurídicas, enfrentará desafios significativos na interpretação de contextos complexos e mesmo do senso comum humano. Nesse sentido, presumo que os princípios jurídicos serão computacionalmente intratáveis, pois, constituindo-se por saberes em grande parte inexprimíveis em mídias, intrincados que estão à autoconsciência, à empatia e ao próprio discernimento humano, tais princípios não se deixam apanhar inteiramente por nenhuma objetivação.

Assim, segundo penso, a presença das ferramentas hermenêuticas flexíveis, notadamente os princípios, continuará sendo um fator crucial para a sobrevivência do Direito como o conhecemos, e provavelmente impossibilitará que a IA atinja a capacidade necessária para substituir, completamente e sem perdas, aplicadores humanos.

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