O seriado de televisão The Boys, derivado da série de quadrinhos com o mesmo nome e distribuído pelo serviço de streaming Prime Video, angariou imediato sucesso ao redor do mundo, desde a estreia da primeira temporada no ano de 2019. Grande parte deste sucesso se deve ao fato de que a trama retrata brilhantemente a forma como o poder corrompe aqueles que o possuem.
ZAFFARONI aborda o tema do Direito penal do inimigo de modo esclarecedor:
Na teoria política, o tratamento diferenciado de seres humanos privados do caráter de pessoas (inimigos da sociedade) é próprio do Estado absoluto, que, por sua essência, não admite gradações e, portanto, torna-se incompatível com a teoria política do Estado de direito. Com isso, introduz-se uma contradição permanente entre a doutrina jurídico-penal que admite e legitima o conceito de inimigo e os princípios constitucionais internacionais do Estado de direito, ou seja, com a teoria política deste último (ZAFFARONI, 2007, p.11)
No enredo, Vought Internacional é uma empresa multinacional que, entre outras coisas, gerencia a “carreira” e a imagem de super-heróis (Os Sete), que são celebridades absolutas. A monetização existente nesse nicho também é um fator que a série desenvolve otimamente – a valer, os supes (ou supers, na versão traduzida) levam vidas de estrelas e seus poderes lhe logram ocupações profissionais extremamente bem-sucedidas no mundo da mídia, nada diferente dos grandes artistas e modelos de prestígio.
Ocorre que a corporação opera muito além do marketing dos supes, pois de fato é responsável pela criação dos mesmos em laboratórios secretos. Sem adentrar demasiadamente no mérito dos crimes e falta de escrúpulos da empresa ao praticar estas condutas, importa constatar o óbvio: eles têm muito a ganhar com a tomada de poder dos super-heróis e à incorporação dos mesmos ao exército e ao projeto de segurança nacional, o que lhes garante poder irrestrito para agir da forma como quiserem com impunidade.
Nesta senda, a segunda temporada da série encena o manejo da opinião das massas para atender a determinados interesses. Isso é feito com a criação da figura do inimigo – qual seja, os “super-terroristas” (estrangeiros com super-poderes). A partir dessa delimitação, segregação e criação da figura dos imigrantes como inimigos, o discurso da corporação em favor dos supes busca fazer que se acredite que os mesmos são a única salvação contra este mal que ameaça a sociedade.
Mister lembrar também que a série retrata os super-heróis de uma forma realista, pois o poder os corrompe e a prática de todos os tipos de crimes, tanto para ganho próprio e/ou satisfazer seus impulsos sádicos quanto para manter limpa a imagem da empresa.
Em semelhante análise, no mês de abril de 2020 escrevemos um artigo tratando do tema Direito penal do inimigo e traçando um paralelo com a série La Casa de Papel, disponível AQUI. No referido texto, aborda-se a maneira com a qual o Direito penal do inimigo se apresenta de modo sobremaneira diferente do que se pretende no presente trabalho.
Para ilustrar o argumento oferecido, cabe destacar uma cena onde Homelander (Capitão Pátria) faz um discurso digno de um grande populista. Em sua fala, traz noções corriqueiras nesta espécie de retórica, utilizando-se de frases como “uma nação abaixo de Deus” e incitando lembranças de um passado utópico onde tudo era melhor (mesmo que este passado só exista em um imaginário falseado).
O bombardeio ideológico através dos mais variados meios de comunicação chega ao ponto de fazer com que os cidadãos fiquem em um constante estado de medo e estresse, inclusive chegando-se ao ponto onde ocorrem assassinatos de inocentes a partir da impressão subjetiva da mera possibilidade de que o outro seja um dos supostos inimigos.
Destarte, a proposta de JAKOBS no sentido de que é possível punir, em casos determinados (o inimigo, delinquente, indesejável) antes mesmo dos atos preparatórios em razão de uma suposta periculosidade é exatamente algo que pode causar cenários de caos conforme acima mencionado:
Portanto, o Direito Penal conhece dois polos ou tendências em suas regulações. Por um lado, o tratamento com o cidadão, esperando-se até que se exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade (JAKOBS; MELIÁ, 2012, p. 17).
O discurso da propagação do terror sempre foi a mais eficaz ferramenta de propaganda para a manipulação das massas. A valer, a partir do momento em que a sociedade começa a apoiar a ideologia proposta, buscando finalmente o extermínio dos indesejáveis, inicia-se uma era de carta branca para que o Estado de polícia comece a operar sem empecilhos.
Dentro deste contexto, cada cidadão da sociedade vire um inimigo em potencial, sem qualquer critério objetivo e sempre atendendo aos interesses do poder estabelecido. Sequestros, tortura e execuções arbitrárias ocorrem de maneira descontrolada. Os mais variados tipos de crime são cometidos pelos sedizentes super-heróis, que na verdade são verdadeiros vilões totalmente corrompidos pelos seus poderes.
A partir da tática da propagação do terror e da promessa de salvação, delimitando um inimigo imaginário para manter a população em forma de rebanho, sempre com medo e agindo de maneira acrítica, inicia-se o processo da tolerância à diferenciação dos seres humanos entre pessoas e não-pessoas, entre cidadãos e ameaças a serem exterminadas.
Dando espaço para o fomento do preconceito contra o inimigo da vez – subjetiva e arbitrariamente escolhido para atender a interesses pessoais – e abrindo mão paulatinamente das liberdades individuais, cada cidadão não se dá conta de que não há absolutamente nada que impeça que, a depender da vontade subjetiva do poder estabelecido, qualquer um pode ser taxado de inimigo e ter seus direitos extirpados.
REFERÊNCIAS
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Organização e Tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 6.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2.ed. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
Publicado por: Canal Ciências Criminais
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