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04 jun
O jardim das veredas que se bifurcam e a Análise Econômica do Direito no Brasil

No conto “O Jardim das Veredas que se Bifurcam”, de Borges, certo personagem abandona riqueza e poder para se dedicar à elaboração de um romance e à criação de um labirinto. O romance, afinal escrito, mostrou-se contraditório. Num capítulo, o herói se encontrava morto; no outro, o herói estava vivo. E o labirinto nunca foi encontrado.

Aqui o primeiro spoiler: romance e labirinto não eram objetivos díspares. O livro era o labirinto e o labirinto era o livro.

O livro era o labirinto e no labirinto se encontrava o jardim das veredas. O jardim de veredas que se bifurcam é uma parábola cujo tema é o tempo. Ts’ui Pen (esse era o nome do personagem) criou um labirinto no qual o tempo não é linear. Ao contrário, existem linhas temporais concomitantes – por isso o herói do romance poderia estar morto em um lapso temporal, e vivo em outro – que não se excluem. É um labirinto de tempo. E é infinito, pois o tempo se bifurca em infinitas possibilidades.

Em 2018, alguns personagens do Judiciário iniciaram discussão sobre caminhos que também se entrelaçam. Ricardo Lewandowski e Luís Roberto Barroso debateram, na ADI n° 5.766, a aplicabilidade da análise econômica do Direito (“AED”) para a questão, as inclinações ideológicas da abordagem e, ainda, sua compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro.

Como na história de Borges, também a AED tem o poder de produzir caminhos capazes de coexistirem. No entanto, assim como a obra de Ts’ui Pen – de início não compreendida -, os ministros parecem não atentar que as múltiplas interpretações providas pela AED não são necessariamente excludentes entre si.

A discussão se inicia pela reserva do ministro Ricardo Lewandowski. A AED possuiria “matiz conservador e de direita”. Em seu entender, certos princípios constitucionais, como a dignidade humana, não poderiam ser interpretados à luz da eficiência e do utilitarismo, como, em sua opinião, faria o Law and Economics.

Luís Roberto Barroso segue outro caminho. Diz que a aritmética não é nem de esquerda nem de direita, e que a matemática é indiferente à ideologia. Ainda que o pragmatismo e o utilitarismo possam se inclinar mais à esquerda ou à direita, não se trataria, no caso em julgamento – as mudanças na concessão da gratuidade de justiça na legislação trabalhista – de optar por uma ideologia, mas, sim, de verificar custos individuais e sociais no sistema jurídico e, a partir daí, saber qual comportamento deve ser incentivado.

Os dois ministros destacam-se pelo papel arquetípico de seus discursos. Personificam duas das principais representações atuais da AED no Brasil.

A primeira, a de Luís Roberto Barroso, sugere que a AED possuiria cunho algo objetivo, alcançado por conta do diálogo com a Economia, esta “mais científica” do que o Direito. Do outro lado, Lewandowski formula a crítica de que a AED pode representar uma ameaça às garantias individuais, pois funcionaria por meio de uma lógica de aumento de riqueza e de busca por lucratividade, numa representação de eficiência que não poderia se coadunar com o discurso jurídico.

Como peças em um quebra-cabeça, as ideias propaladas não necessariamente se opõem. Ao contrário, elas se completam, dando significado a um todo maior.

Não se trata de saber qual área do conhecimento humano se sobrepõe, ou mesmo de defender tal ou qual ideologia. A AED é – como não deixa de ser o próprio ordenamento jurídico – um instrumento, um método, apto a ser utilizado para se alcançar determinados fins.

Problemas da AED no Brasil

A AED, assim como o labirinto da metáfora de Borges, possui sucessivas linhas temporais. O problema é que, no desenrolar da disciplina, nas linhas temporais aplicáveis à AED – momentos normalmente delineados como “os três Posners” –, os objetos de estudo do jurista e do economista começaram a se confundir. Então, a AED, no Brasil, passou a ser encarada como algo que ela não é, como ilustra o aparte de Lewandowski no trecho em que conceitua a AED como “de direita”.

São três os principais problemas que interferem na percepção da AED no Brasil: (i) a visão da disciplina ainda é muito arraigada àquela propagada pela Escola de Chicago; (ii) existem problemas de tradução dos termos econômicos recepcionados pelo Direito, o que gera uma compreensão equivocada, por parte do jurista, sobre o que seria a Economia e sobre como funcionaria o seu diálogo com o ordenamento jurídico; e (iii) o sentimento messiânico, advindo de uma visão na qual a AED é a solução de todos os males.

Problemas de tradução

Existem diversos problemas de tradução no diálogo entre Direito e Economia. O jurista enxerga na Economia uma possibilidade de sofisticar o Direito por meio de um aprofundamento de sua cientificidade, fato que, presumivelmente, geraria um ordenamento jurídico de maior qualidade. O ponto é que os profissionais do Direito acabam por distorcer conceitos econômicos. O próprio Posner, em um momento inicial da AED – conforme a primeira e a segunda edição de seu livro clássico –, chega a falar que o comportamento da Common Law é “ineconômico”. Ora, nenhum economista fala “ineconômico”.

Trata-se de situação recorrente. É interessante notar como tradução e percepção de termos técnicos se interpenetram, como fica claro na passagem de Deidre McCoskley, ao comentar o termo criado por Richard Posner:

O argumento na passagem é lastreado em parte no uso equívoco do vocabulário econômico: “alocar”, “maximizar”, “valor” e “escassez” são termos técnicos em economia, com significados precisos, mas aqui eles são usados em sentidos mais amplos, para evocar um senso de poder científico, para afirmar precisão sem necessariamente empregá-la. O artifício mais memorável (sweetest turn) é o uso de “ineconômico”, que não é, de fato, um termo técnico em economia, mas encapsula o argumento de que os magistrados seguem modelos econômicos, já que agir de outra maneira seria desperdício.

Denuncia-se que uma “tradução” mal feita – uso de termos econômicos em desacordo com seu significado na Economia – traz como efeito uma “percepção” científica do Direito (situação que ilumina outro problema: o que seria, afinal, ciência?).

O problema no diálogo entre as disciplinas não se limita à má compreensão da Economia pelo Direito. A falha de comunicação também ocorre no outro sentido. Existem situações no do Direito que escapam à compreensão convencional do economista.

Veja-se a colisão de princípios jurídicos. Ainda que um princípio seja posto de lado em certo episódio, não é removido do ordenamento, podendo prevalecer em outro caso. Como criar previsibilidade a partir disso? Outra situação de difícil aceitação diz respeito à função social dos contratos, na qual, por exemplo, introduz-se uma cláusula rebus sic stantibus por via judicial – o economista lidaria mal com uma alteração que desrespeitasse a cláusula da autonomia da vontade das partes expressa ex ante.  Tais problemas fazem com que vários economistas considerem o Direito uma caixa-preta.

Segue-se o segundo spoiler: a “Juseconomia” não é algo metodologicamente distinto da Economia, possuindo objeto específico e se abrindo às especificidades deste objeto. Direito e Economia é o uso de ferramentas da Economia para a compreensão de fenômenos jurídicos, respeitando as tradições e o modo de funcionamento do ordenamento jurídico.

Com isso, percebe-se que há um problema de heteropercepção da AED no Brasil. Propaga-se a ideia imprecisa de que a AED, ao proporcionar a recepção da Economia pelo Direito, aumentaria o teor de cientificidade da prática jurídica. No entanto, a própria Economia não se compreende como científica, ao menos no sentido mais rigoroso do que viria a ser ciência.

Isso não quer dizer que a incorporação de termos econômicos pelo Direito seja destituída de funcionalidade caso não haja uma tradução exata. Não é esse o ponto, até porque, visto se tratarem de saberes distintos, uma tradução completamente fiel é impossível. Defende-se, na verdade, que tais termos não sejam alheios a seus significados originais, a ponto de se tornarem irreconhecíveis pelo seu campo originário e, assim, acarretar sua perda de cientificidade possível – cientificidade esta que, lembre-se, é um dos objetivos a se alcançar por meio deste diálogo.

A captura pela Escola de Chicago

Muito do que se produz em relação à disciplina ainda é pensado, no Brasil, sob a ótica da Escola de Chicago, seja em ideologia, seja em método.

Apresenta-se o terceiro spoiler: nem toda AED é Chicago. Aliás, nem Richard Posner, desde meados da década de 90, professa visão tão ortodoxa da AED. A AED, entre nós, no atual momento, pode se beneficiar de certo sincretismo metodológico, tão ao gosto de nossa exegese constitucional.

Interpretar a AED por meio de uma ótica plural não significa, necessariamente, desnaturá-la. A AED trabalha com a lógica de incentivos. Esses incentivos não podem, no entanto, ser reduzidos a um emaranhado de cálculos probabilísticos, como, erroneamente, alguns juristas contrários à AED cogitam. Da mesma forma, não é correto pensar que o pensamento econômico, aplicado ao Direito via AED, pretende reduzir o conceito de justiça a uma equação de custo-benefício.

Mas, de fato, a AED possui intenção de dotar o ordenamento jurídico de maior eficiência. Essa pretensa eficiência adviria, dentre outras formas, da interpretação do sistema legal. Um juiz, ao julgar um caso, deveria, segundo a ótica da AED, considerar qual interpretação maximiza a eficiência na aplicação das leis. Não há, no entanto, definição clara do que seja eficiência.

Trata-se de assunto delicado. É comum, nas discussões e artigos que envolvem Economia e Direito, que haja a defesa de determinada interpretação do que seria, em tese, mais eficiente. No entanto, não há preocupação em definir o que é eficiência. Esse tipo de situação remete àquilo que talvez seja o principal ponto de debate sobre a recepção da Economia pelo Direito e do movimento interdisciplinar como um todo: a equalização entre os conceitos de eficiência e justiça.

Diversos autores, a exemplo de Ronald Dworkin, Guido Calabresi, e do próprio Richard Posner, debatem sobre como essas duas grandezas se relacionam. O debate é complexo, mas um resumo satisfatório indica que eficiência (o que inclui, em seu núcleo semântico, o aumento de riqueza de uma sociedade) é ingrediente da justiça (acompanhado de maior ou menor grau de distribuição). O ponto é que os conceitos não são sucedâneos.

E mais do que isso. O intuito da AED não é tornar o Direito subserviente à Economia ou vice-versa. O objetivo é, esse sim, dotar o Direito de mais uma possibilidade de avaliação dos fenômenos sociais. Trata-se de enriquecer e não de subverter. Nesse ponto, dialoga-se com o discurso do ministro Barroso no sentido de que sim, de fato, a avaliação de custos individuais e a comparação destes com os custos sociais, em dada situação recorrente no sistema judicial brasileiro, pode nos mostrar que o Estado está, na verdade, fornecendo incentivos errados aos operadores do Direito.

Não menos importante é salientar que a AED, ao contrário do que considerou Ricardo Lewandowski, não é necessariamente “de direita”. Nada é necessariamente de direita ou de esquerda. São os discursos humanos, simpáticos a determinadas ideologias, que capturam ideias, dados, campos do conhecimento, e os transmutam de acordo com aquilo que se pretende defender. “Direita” e “Esquerda” traduzem uma noção de subjetividade humana, e não de objetividade científica.

A discussão ganha importância ainda maior quando a AED é tropicalizada; quando é trazida a uma ordem constitucional distinta, com vocação redistributiva mais explícita do que a do cenário norte-americano. A importação acrítica da AED, sem sua ressignificação pelo ordenamento brasileiro, pode tornar a disciplina incompatível com a ordem constitucional nacional e se tornar, afinal, contraproducente.

A visão messiânica da AED

Vem aí o último spoiler: a AED não é solução mágica, mas método. Trata-se de instrumento a ser utilizado pelo jurista para acrescentar, ao Direito, um ponto de vista; a ideia é tornar o sistema legal mais apto a compreender os fenômenos jurídicos, a cada dia mais complexos.

Além de estar longe de ser solução mágica, os resultados na utilização da AED dependem não só da compreensão e domínio desse método por quem o aplica, mas também dos objetivos de quem o faz.

É preciso separar as coisas: não é que a AED tenha o condão, intrinsecamente, de esvaziar os direitos fundamentais; o que ocorre é que alguém, ao utilizar a AED – que, frise-se, é método – poderia ser capaz de o fazer, pois pode ocorrer, por exemplo, seu uso inadequado.

A visão messiânica é oposta à principal contribuição que a AED pode fornecer ao Direito brasileiro, qual seja, aumentar as formas de aplicação e interpretação das normas e práticas jurídicas, permitindo o desenvolvimento de nossas ciências jurídicas e reduzindo seu risco de estagnação.

Os vários futuros da AED

Ts’ui Pen, no conto de Borges, profere a seguinte frase: “deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de veredas que se bifurcam”. A AED, como no jardim de veredas, pode se bifurcar em diferentes caminhos, aptos a gerar diversos futuros. Como na obra de Ts’ui Pen, as linhas temporais, –  e os futuros -, não se anulam. Eles podem coexistir.

Não se trata de importar algo pronto e acabado, ademais pensado sob outra sociedade e ordenamento. Trata-se de adicionar mais um ponto de vista ao leque do Direito brasileiro. Lega-se então esse desejo para a AED no Brasil: que ela seja capaz de nos permitir explorar muitos futuros.

Fonte: JOTA

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