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12 mar
10 coisas que aprendi escrevendo a dissertação do mestrado – Por Nazareno Rêis

 

 

Enquanto escrevia a minha dissertação de mestrado, felizmente defendida e aprovada, confirmei algumas suspeitas. Não apenas sobre o tema objeto da minha pesquisa, mas também sobre coisas importantes a respeito do ato de escrever.

Tomei nota de algumas dessas coisas:

 

1 – O tema da pesquisa é sempre muito maior do que pensamos inicialmente

Os gregos antigos imaginavam que o sol era do tamanho de um pé humano. Hoje sabemos que ele é mais de 100 mil vezes maior que a Terra. O que mudou de lá para cá? A quantidade de pesquisa e conhecimento acumulada, é claro. Guardadas as proporções, é mais ou menos isso que acontece com quem se propõe a escrever uma dissertação de mestrado.

 

Frequentemente subestimamos aquilo que não conhecemos bem, outras vezes nos perdemos em sonhos ou ideias difusas e muito abstratas, quando contemplamos algo com atenção. É bom sonhar, mas a ciência e a pesquisa não casam bem com abordagens oníricas.

 

Carlos Salas, um mestre da boa escrita, disse que o cérebro é um animal dentro de outro animal, e que é preciso domá-lo, se quisermos fazer ele trabalhar para nós em algo concreto. A pesquisa é um processo de investigação externa, mas também de domesticação dos impulsos internos da nossa mente, em busca de uma visão equilibrada do mundo.

 

Li em algum lugar que Eça de Queirós teria dito que as páginas mais bem escritas em língua portuguesa seriam aquelas do capítulo sete de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, quando Machado de Assis descreve um delírio do protagonista. “Mutatis mutandis”, é a descrição de um mestrando contemplando seu tema.

 

Primeiro, Brás se transforma num gordo barbeiro chinês; depois, ele vira um livro hirsuto; e, finalmente, volta à sua forma humana, agora montado num hipopótamo que regressa ao começo dos tempos e vai galopando com Brás no lombo rumo ao futuro, passando pelo Éden e outras paragens, conversando com a Natureza em pessoa, até chegar no século final, quando o hipopótamo na verdade se revela como Sultão, o gato de estimação de Brás, brincando com uma bola de papel.

 

Assim também acontece com o tema de pesquisa: primeiro temos uma visão fantástica dele, que nos leva a lugares fabulosos e a soluções rápidas e extraordinárias; à medida que avançamos no processo de filtragem, começamos a perceber as suas formas mais prosaicas e, quando finalmente estamos diante do problema de pesquisa, que é o tema em carne e osso, vemos que o factível está muito aquém do sonho, porém é muito mais palpável. O problema de pesquisa é o gato Sultão brincando com a bola de papel.

 

2- Conhecer a fundo o tema é fundamental

Catão disse: “rem tene, verba sequentur”. Ou seja, tenha a coisa e a palavra se seguirá naturalmente. A dissertação não é um texto ficcional (pelo menos, não deve ser). Assim, não é dado ao autor muita margem para invenção.

 

A maior parte do tempo, ele deve regurgitar as suas leituras, embora isso deva ter um quê de originalidade. Conhecer o tema previamente e de modo seguro é fundamental para que a escrita tenha fluência e sinceridade. Quando tentei escrever alguns capítulos sem ter lido bem os assuntos, surpreendi-me inventando coisas, fantasiando e tentando encaixar frases que me pareciam mais imprescindíveis do que a verdade. Logo apaguei tudo e voltei à leitura.

 

Percebi que não estava preparado para escrever sobre aquilo. O pior é que isso acontece com indesejável assiduidade. Basta baixar um pouco a guarda e a Quimera se senta ao lado. A melhor forma de evitar isso é manter-se em contato cerrado com boas leituras, fazer-se acompanhar dos que já se ocuparam eficazmente do tema de interesse.

 

3 – É bom ter pessoas para conversar sobre o texto

 

É estranho pensar o seguinte: ninguém jamais viu diretamente o próprio rosto, nem ouviu a própria voz à distância. Claro, podemos dizer que já nos vimos no espelho ou alguma superfície polida qualquer; ou que já ouvimos uma gravação da nossa própria voz. Isso pode ser verdade, mas prova apenas que vimos ou ouvimos um registro externo da nossa imagem e da nossa voz.

 

Isso é outra coisa, somos seres relacionais. Precisamos do outro para sermos quem somos e nos compreendermos. A linguagem, ela mesma, é um tabuleiro de símbolos em que cada lance só faz sentido se houver um interlocutor para apreciá-lo e respondê-lo com outro lance apropriado. A execução da escrita, em grande medida, apresenta-se como um monólogo imerso em uma confusa polifonia; à nossa cabeça vêm, nessa hora, intuições mais ou menos inexplicáveis, memórias de leituras anteriores e de conversas sobre o tema, clichês que nos obsedam há anos, enfim o fluxo de consciência em toda a sua riqueza e ambiguidade.

 

Ao trocarmos ideias com um interlocutor qualificado — pode ser o(a) orientador(a), um(a) colega, ou outro alguém capaz — temos oportunidade de refinar ideias próprias, que nos ocorrem de modo aparentemente inextricável. Eventualmente, isso é tão bom que, apenas no esforço para explicarmos uma passagem do texto que estamos escrevendo, nós mesmos constatamos imediatamente algumas inconsistências ou obscuridades que precisam de correção. Ou seja, o outro é o espelho de que precisamos para nos vermos.

4 – A rotina leva à inspiração

 

Um pequeno progresso é um progresso. Não dá para escrever um texto de aproximadamente cem páginas, com qualidade, em apenas poucos dias. A ideia de que a dissertação decorre de uma gestação longa com um parto rápido é muito atraente, mas dificilmente realizável.

 

Na prática, a escrita de uma dissertação se parece mais com o gotejamento de uma nascente do que com uma borrasca no meio da noite. A questão da página em branco já foi resolvida por Hemingway. Ele disse que contra ela só há um remédio: começar a escrever. Simples, porém, difícil. Mas é isso mesmo. Ninguém pode escrever um trabalho, medíocre ou brilhante, se não começar, e se não continuar até o fim. A disciplina é inspiradora.

 

 

5 – Convém respeitar o leitor e estabelecer um vínculo honesto com ele

 

A escrita é uma forma de comunicação interpessoal. Uma das mais importantes, por sinal. Mas, por alguma razão, ela não é compreendida assim à primeira vista, e não é raro que seja usada como instrumento de tortura do leitor (e não me parece uma boa ideia torturar a Banca). Ninguém levaria a sério alguém que, numa conversa, começasse a falar coisas sem sentido ou totalmente fora de propósito (e, pior, não parasse de falar). Mas, na escrita, talvez por falta do item 3 (acima), pode-se acreditar que é possível essa viagem psicodélica em prejuízo do coitado do leitor.

 

Se não nos policiarmos rigidamente, começamos a escrever coisas completamente despropositadas apenas para preencher os espaços em branco da tela e avolumar o trabalho final. É preciso sempre voltar ao texto, relê-lo com cuidado e se colocar no lugar do leitor, para expurgar essas alucinações importunas. Fazendo isso, muitas vezes percebemos que castigo imerecido estávamos impondo ao benevolente indivíduo que se dispôs a ler o nosso trabalho. Em outras palavras, para bem escrever, é preciso deixar de escrever ou apagar muita coisa.

 

 

6 – A dissertação lembra um conto ou uma novela, nunca um romance

 

A informação hoje não é matéria escassa. Pelo contrário, há informação demais disponível para o pesquisador — especialmente em ciências sociais —, quando se faz um recenseamento bibliográfico. Por isso, é preciso não escrever demais, nem falar de coisas impertinentes. Uma dissertação de mestrado, como ensinam os metodologistas, deve concentrar-se em apenas um problema central, embora circundado por subproblemas.

 

Abrir muitas frentes de trabalhos pode ser um erro terrível — que infelizmente quase todos cometemos, e cujo remédio é a releitura e o enxugamento. O que mais se deve evitar é lançar questões para os quais ou não haverá solução no texto, ou, se houver, será pobre demais. Assim, o melhor é evitar referências que não levarão a lugar algum — confesso que não consegui seguir à risca essa verdade. Tchekhov, o mestre da narrativa curta, disse que “se uma espingarda aparece num conto, ela tem que disparar”.

 

Isso também ocorre com a dissertação. Cada elemento que aparece no texto deve ser funcional.  Desde as palavras utilizadas, às frases, aos períodos, aos parágrafos, aos itens, até aos capítulos, tudo deve estar numa boa harmonia, colaborando para a solução do problema de pesquisa. Se uma passagem do texto nos soa esquipática, provavelmente é mesmo.

 

7 – A intertextualidade é o meio ambiente da pesquisa em direito

 

Cada texto que escrevemos é uma releitura da realidade, iluminada pelos textos com os quais tivemos contato anterior. A originalidade total não existe. Particularmente no campo do direito, a pesquisa é muito dependente de textos. Embora haja amplas possibilidades de pesquisa jurídicas diretas sobre a realidade, com dados, números, estatísticas e até experimentos, a verdade é que nossa academia ainda é profundamente dominada pela cultura da pesquisa bibliográfica e da escrita intertextual.

 

Logo, é muito importante ler bons textos para produzir bons textos. Afinal, a escrita é, em grande medida, a imitação do que se leu. A escolha correta das leituras, com a ajuda do orientador, é fundamental. Por um lado, isso evita leituras desnecessárias e, por outro, constitui a comunidade de ideias da qual queremos fazer parte.

 

8 – Um lugar para escrever é indispensável

 

“Grandes coisas acontecem quando o homem e a montanha se encontram”, essa frase, de William Blake, é tão boa que se tornou lugar-comum, e não raro a ouvimos até em filmes de comédia. O que Blake quis dizer foi que a paz das montanhas oferece ao sujeito a atmosfera necessária para pensar densamente em coisas grandes, para além do ramerrão.

 

De fato, a Bíblia é cheia de passagens em que inspirações, visões, conversas diretas com Deus ocorreram no cume de algumas montanhas (Tabor, Horebe, Sinai, Carmelo, Oliveiras, etc.). O pensamento pagão também compartilha da ideia de que a montanha é inspiradora. Basta pensar no Monte Parnaso. Mas não é preciso subir uma montanha para encontrar um lugar inspirador.

 

Felizmente, com as tecnologias que temos hoje, dá para transformar o quarto de um apartamento num ambiente estimulante para o pensamento. Cada um saberá como fazer isso. Eu, particularmente, gosto de que seja algo próximo à Natureza e que tenha uma mesa cheia de papel e canetas. Seja como for, o importante é que o espaço da escrita seja bem delimitado do resto da vida diária.

 

9 – Escrevemos enquanto dormimos

 

Realmente não sabemos nada sobre como o nosso cérebro trabalha. É um estranho que habita em nós e, no entanto, é também o responsável por quem somos. O certo é que ele não segue um padrão celetista de horário de trabalho.

 

Qualquer pessoa que esteja lendo e pensando fixamente sobre um problema certamente tem um caso para contar sobre lampejos que surgiram “do nada” e que pareciam muito interessantes para se perderem. Isso acontece, suponho, porque o cérebro é caprichoso e se parece com aqueles heróis aposentados de filme de ação, que apenas se dispõem a voltar ao trabalho depois de muita insistência da frágil vítima que dele precisa. Mas quando voltam … vêm com tudo.

 

Durante o sono, muitos insights acabam ocorrendo e alguns deles permanecem em nossa memória tão logo acordamos. Nem tudo é brilhante, claro, mas muitas coisas dessas reminiscências do sono podem ser aproveitadas. Para isso, é muito importante também ter um caderno de notas, de modo a poder anotar essas ideias tão logo surjam, porque elas são muito fugazes.

 

10 – Tudo é história

 

Ninguém ainda inventou uma forma melhor de comunicação de um tema do que a narrativa, ou “contação” de história (storytelling). Em português não temos bem estabelecida a diferença de vocábulos para designar uma narrativa real e outra fictícia. É verdade que Câmara Cascudo defendeu o uso da distinção entre “história” e “estória”, como no inglês history/story, mas isso não é sempre praticado.

 

O certo é que mesmo a narrativa de um fato real, que deve ser o caso de uma pesquisa científica, pode se beneficiar dos recursos técnicos e estilísticos da boa literatura de ficção. Não é porque se trata de uma pesquisa que a escrita precisa ser aborrecida. Acho até que, pelo contrário, não deve ser.

 

Além disso, a situação daquele que está escrevendo uma dissertação lembra bastante a de um romancista, embora naturalmente haja diferenças de método, de propósitos e de limites para ambas as tarefas. Para tornar a produção da dissertação um trabalho prazeroso e entregar ao leitor algo bem legível, não vejo por que não se possa empregar, de forma prudente, algumas estratégias de storytelling.

 

Creio que isso melhora muito o clima da escrita e da leitura. Por fim, embora não tenha escrito um romance, durante todo o trabalho me lembrei muito da lição de E. L. Doctorow: “Escrever um romance é como dirigir um carro à noite. Você só consegue enxergar até onde a luz dos faróis alcança, mas pode fazer a viagem inteira assim”.

 

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2 Comentários em "10 coisas que aprendi escrevendo a dissertação do mestrado – Por Nazareno Rêis"

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Clenilson

Excelente 👍🏻! Parabéns professor.

Clenilson C Lima

Excelente 👍🏻! Parabéns, professor.

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