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O problema da “herança digital”

O prof. Gabriel Furtado discute sobre o tema que tem sido cada vez mais debatido no Direito, que é o do novo problema da herança digital, fruto da virtualização de vários aspectos da vida civil.

11 de Abril de 2019

A herança digital é tema que tem ganhado a atenção recente do direito civil brasileiro, especialmente por conta de sua novidade e da ausência de regulamentação jurídica no Brasil – como, a rigor, na maioria dos outros países da nossa mesma tradição. Conceitualmente, pode-se defini-la como sendo o conjunto de interesses patrimoniais e existenciais afeitos a uma pessoa existentes em suas contas virtuais em redes sociais e sítios eletrônicos em geral. Por exemplo: contas no Facebook, no Twitter, no YouTube, jogos virtuais, e-books etc. A questão central é: quais destinações dar a esses bens e a essas informações sensíveis após a morte da pessoa titular?

Duas vertentes principais têm sido formadas: uma primeira pretende tratar esse tópico pelo regime jurídico dos direitos da personalidade, principalmente quanto aos dados sensíveis existentes em redes sociais; uma segunda, pelo regime jurídico do direito das sucessões, usando como um de seus argumentos a possibilidade de haver disposições testamentárias (espécie de sucessão) tanto quanto aos interesses patrimoniais quanto aos existenciais. Nesse sentido, preceitua o Código Civil em seu art. 1.857, § 2º: “São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado”.

Há, por certo, uma preocupação central com a privacidade post mortem no tema da herança digital. Mas a isso não está restrito. Há também preocupações com a privacidade de terceiros, haja vista relacionamentos virtuais e conversas que possam ter sido travado entre a pessoa falecida e estes, bem como preocupações com aspectos estritamente patrimoniais, haja vista a possibilidade de imediata aferição pecuniária de bens jurídicos virtuais (como, por exemplo, e-books, jogos virtuais e contas que geram receitas no YouTube e Instagram). Nesse último ponto, a dúvida é sobre a quem seriam destinados tais direitos patrimoniais.

As dúvidas vão surgindo e se replicando por conta da ausência de um regramento jurídico da herança digital no Brasil. Mas já há discussões legislativas nesse sentido, havendo dois projetos de lei de maior repercussão: os Projetos de Leis nº 7742/2017 e 8562/2017, ambos em trâmite na Câmara Federal dos Deputados.

 

O Projeto de Lei nº 7742/2017, em trâmite na Câmara Federal de Deputados, propõe o acréscimo do art. 10-A ao Marco Civil da Internet a fim de dispor sobre a destinação das contas virtuais em redes sociais após a morte da pessoa titular. Sua redação seria essa:

 

Art. 10-A. Os provedores de aplicações de internet devem excluir as respectivas contas de usuários brasileiros mortos imediatamente após a comprovação do óbito.

§ 1º A exclusão dependerá de requerimento aos provedores de aplicações de internet, em formulário próprio, do cônjuge, companheiro ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive.

§ 2º Mesmo após a exclusão das contas, devem os provedores de aplicações de internet manter armazenados os dados e registros dessas contas pelo prazo de 1 (um) ano, a partir da data do óbito, ressalvado requerimento cautelar da autoridade policial ou do Ministério Público de prorrogação, por igual período, da guarda de tais dados e registros.

§ 3º As contas em aplicações de internet poderão ser mantidas mesmo após a comprovação do óbito do seu titular, sempre que essa opção for possibilitada pelo respectivo provedor e caso o cônjuge, companheiro ou parente do morto indicados no caput deste artigo formule requerimento nesse sentido, no prazo de um ano a partir do óbito, devendo ser bloqueado o seu gerenciamento por qualquer pessoa, exceto se o usuário morto tiver deixado autorização expressa indicando quem deva gerenciá-la.

 

A justificativa apresentada na propositura foi a seguinte:

 

Com o avanço da internet no dia-a-dia das pessoas, o uso das chamadas redes sociais tem se tornado cada vez mais frequente, havendo notícia de que, em 2015, a aplicação de internet Facebook tenha alcançado a marca de um bilhão de usuários, o que significa dizer que aproximadamente um em cada sete habitantes do mundo tem acesso a essa aplicação de internet.

Deve ser assinalado que, além do Facebook, também se tornaram muito populares outras tantas aplicações de internet onde os usuários têm a liberdade de criar perfis próprios e delas se utilizam para o tráfego e armazenamento do mais variado tipo de dados e, também, para o fluxo de comunicação, como o Twitter, Instagram e Google+.

Ocorre que, por conta da grande popularização desse fenômeno, que pode chegar à quantidade de 30% de pessoas no mundo detentoras de perfis em redes sociais, parte considerável das pessoas no Planeta acabam deixando perfis acessíveis por longo tempo nas redes sociais, mesmo depois de mortas, levando com que seus parentes e entes queridos mais próximos deparem, mesmo que involuntariamente, com esses perfis, situação essa que, muitas vezes, tem o poder de causar-lhes enormes dor e sofrimento.

Para evitar essa indesejável situação é que estamos propondo que as contas nos provedores de aplicações de internet sejam encerradas imediatamente após a comprovação do óbito do seu titular, mas com a cautela de serem tais provedores obrigados a manter os respectivos dados da conta armazenados pelo prazo de um ano, prorrogável por igual período, sobretudo para fins de prova em apurações criminais.

Além disso, também estamos prevendo a hipótese em que esses mesmos familiares próximos do falecido resolvam manter uma espécie de memorial a partir dessa mesma conta, que, contudo, somente poderá? ser gerenciada com novas publicações no perfil do falecido e outras ações que se fizerem necessárias, se o falecido tiver deixado previamente estabelecido quem poderá? gerenciar a sua conta após a sua morte.

Deve ser notado que essas medidas já? se encontram previstas em termos de uso de algumas aplicações de internet, sem, contudo, que tenha sido conferido um tratamento uniforme à matéria, razão pela qual entendemos conveniente a apresentação deste projeto de lei, a fim de assegurar aos entes queridos do usuário falecido a solução prevista nessas mesmas medidas.

Sendo essa matéria de interesse para grande parte dos usuários das chamadas redes sociais no nosso país, esperamos contar com o imprescindível apoio dos nossos pares para a sua aprovação.

 

O Projeto de Lei nº 8562/2017, em trâmite na Câmara Federal de Deputados, propõe o acréscimo de um capítulo inteiro ao Código Civil, a ser composto pelos arts. 1.797-A ao 1.797-C, a fim de preceituar expressamente sobre a herança digital. Sua redação seria essa:

 

Art. 1.797-A. A herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido, tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual, nas condições seguintes:

I – senhas;

II – redes sociais;

III – contas da Internet;

IV – qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido.

Art. 1.797-B. Se o falecido, tendo capacidade para testar, não o tiver feito, a herança será transmitida aos herdeiros legítimos.

Art. 1.797-C. Cabe ao herdeiro:

I – definir o destino das contas do falecido;

a) – transformá-las em memorial, deixando o acesso restrito a amigos confirmados e mantendo apenas o conteúdo principal ou;

b) – apagar todos os dados do usuário ou;

c) – remover a conta do antigo usuário.

 

A justificativa apresentada na propositura foi a seguinte:

 

Tudo o que é possível guardar em um espaço virtual – como músicas e fotos, passa a fazer parte do patrimônio das pessoas e, consequentemente, da chamada “herança digital”.

O Caderno TEC da Folha de S.Paulo trouxe uma reportagem sobre herança digital a partir de dados de uma pesquisa recente do Centro para Tecnologias Criativas e Sociais, do Goldsmiths College (Universidade de Londres). O estudo mostra que 30% dos britânicos consideram suas posses on-line sua “herança digital” e 5% deles já? estão incluindo em testamentos quem herdará seu legado virtual, ou seja, vídeos, livros, músicas, fotos e e- mails.

No Brasil, esse conceito de herança digital ainda é pouco difundido. Mas é preciso uma legislação apropriada para que as pessoas ao morrerem possam ter seus direitos resguardados a começar pela simples decisão de a quem deixar a senha de suas contas virtuais e também o seu legado digital.

Quando não há nada determinado em testamento, o Código Civil prioriza familiares da pessoa que morreu para definir herdeiros. Dessa forma, o presente Projeto de Lei pretende assegurar o direito dos familiares em gerir o legado digital daqueles que já? se foram.

 

Como visto, o problema da herança digital se liga primordialmente a questões cíveis afeitas ao estado das coisas após a morte de uma pessoa. Tangencialmente pode afetar terceiras pessoas outras para além dos seus herdeiros, mas é antes e sobretudo uma questão que se relaciona à personalidade da pessoa falecida. Por isso, o tratamento legal desse problema fica melhor situado no Código Civil que no Marco Civil da Internet. Assim, inicia melhor sua caminhada o Projeto de Lei nº 8562/2017 que o Projeto de Lei nº 7742/2017 – ambos em trâmite na Câmara Federal de Deputados.

Este último, que pretende promover alterações no Marco Civil da Internet, além de tratar a questão da herança digital pela imposição de deveres a terceiros, é confuso. Inicialmente prevê que os provedores de aplicações na internet devem excluir as contas de brasileiros mortos imediatamente após a comprovação do óbito (art. 10-A, caput). Mas já na sequência diz que essa exclusão depende de requerimento de seus herdeiros, obedecida a linha sucessória (§ 1º). E logo após afirma que esses herdeiros poderão requerer que as contas sejam mantidas (§ 3º). Ou seja: parece não ser claro ao projeto quanto a quais são os efeitos automáticos e imediatos decorrentes do falecimento de pessoa titular de contas virtuais em provedores de aplicações da internet.

Já o primeiro projeto, que pretende incluir disposições legais no Código Civil, além de melhor situado dentro do ordenamento jurídico, aparenta tratar a princípio de forma mais clara e adequada a questão. Isto porque traz maior abrangência, ao incluir dentro da herança digital tanto interesses existenciais quanto patrimoniais, e por possibilitar a constituição de herdeiro testamentário apenas para o trato da herança digital (arts. 1.747-A e 1.747-B). Por fim, abre possibilidades variadas para o destino das contas virtuais da pessoa falecida, não prevendo um efeito jurídico automático mas deixando isso a cargo do herdeiro por elas responsável: transformação em memorial, exclusão de dados pessoais da pessoa falecida ou a remoção da conta (art. 1.747-C).

Um ponto que talvez pudesse ser melhorado seria a previsão de que a herança digital deveria ser transmitida “em bloco” a um único herdeiro, no que tange aos interesses existenciais. Isso para que haja uniformidade no tratamento dado às contas virtuais da pessoa falecida. Já os interesses patrimoniais poderiam ser transmitidos “em fatias” aos herdeiros em geral, conforme as leis sucessórias já vigentes.

Certo é que o Congresso Nacional andaria bem legislasse com celeridade sobre essa questão, a fim de diminuir as dúvidas existentes e o estado de relativa insegurança jurídica quanto à herança digital.

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